30.10.24

Sempre em direto

The Comet Is Coming, “Blood of the Past”, in https://www.youtube.com/watch?v=ore8IypVT4k

(Isto não é o manifesto de um Velho do Restelo)

Não passa o tempo senão como vertigem de si mesmo. As pessoas desajudam. Incendeiam a privacidade no lugar indigente onde tudo é trespassado em direto. Os emissários das novas tecnologias convenceram as pessoas que o acesso democrático reforçou o contingente da igualdade. Só os que voluntariamente se excluem do gongórico espetáculo em direto das suas vidas é que parecem ficar à margem da orgia de democracia e de igualdade. 

É o contrário. Eles é que ficam protegidos do olhar sindicante dos outros sem caírem no logro do festim de democracia que é o frenético espetáculo em direto que condenou a privacidade à extinção. Os emissários que vendem as regalias das novas tecnologias não advertiram que o seu uso excessivo trouxe às pessoas a nacionalização do seu espaço privado. 

Com a exposição pública à escala planetária, as pessoas deixaram de ter fronteiras. É o império da partilha global. Talvez os procuradores do comunitarismo estejam contentes com o avanço, que para outros contém um retrocesso. Tudo se mostra, tudo fica à mostra, desde os banais pensamentos, aos profundos devaneios; desde os mecenas do narcisismo, aos estetas da angústia que medra na omissa autoestima como narcisismo ao contrário; desde os que se amesquinham, sem contudo darem conta, quando peroram sobre as perorações dos outros, aos que não se escondem da indigência em direto e oferecem uma mistura de ignorância disfarçada de opinião, abrilhantada por erros de sintaxe e ortográficos; desde os corpos que querem espelhos nos olhares dos outros, num voyeurismo virado do avesso, aos olhares intrusos que laboram na incessante busca de corpos alheios despidos de pudor.

Tudo em direto, obliterando a dignidade. Em nome de uma partilha que parte da nossa gregária condição, mesmo que não se perceba que ali não há causa e consequência. Em direto, oprimindo as sombras tutelares que já foram a caução da privacidade. Numa atroz, corrosiva procissão em que se confunde a extinção da dignidade com a democracia global e instantânea. Já não há futuro, porque apenas interessa a voracidade do instante. O passado, consumido como instante efémero, desgasta-se no rastilho da desmemória intencional. 

Só falta passar o pensamento em direto.

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