O arraial era longe. As pessoas pareciam bonecos de chumbo. A paisagem, como se tivesse sido montada por um estratega lúdico que, à falta de interesse pelas dores da realidade, se entretinha com cenários imaginados. À semelhança do generalato que elucubra longamente sobre hipóteses de guerra para não deixar adormecer o vírus da beligerância.
Longe estava o arraial, mas o alarido – mistura de cores, sons e luzes feéricas que, mesmo à distância, rompiam a quietude do olhar – fazia-se notar. Estava de vigia, longe quanto baste. Dizia, sem receio de rótulos menos simpáticos que compensassem a arrogância não fingida, que o problema dos arraiais é terem gente.
(Ia a dizer “muita gente”, mas retificou a tempo.)
(O rótulo que talvez mais o apoquentasse era “fascista social”. Depressa caiu em si: é indiferente que lhe seja pespegado esse ou outro qualquer rótulo. As palavras, de onde vêm, não causam dor.)
A vigia era uma cura necessária. Não precisava de se exilar quando o calendário deixava o arraial à mostra. Já tinha demandado o exílio antes. Cansara-se da cidade, das pessoas sem concessões, da idolatria que as pessoas dedicavam, à vez, às estrelas sempre efémeras (sempre os próximos candidatos ao esquecimento), das agressões gramaticais, do estado geral de fingimento, das suposições arbitrárias, das especulações diletantes, das pessoas venais ao primeiro aceno materialista; cansara-se: da pequenez mental, da mesquinhez hasteada como se fosse uma bandeira carregada de orgulho.
Desde a vigia, longe do estado de sítio em que o sítio mergulhara, pusera-se a salvo. Ou não, na totalidade. Não foi tão longe ao ponto de o olhar não conseguir alcançar a cidade onde foi dado como nado. Rateou o mal da empreitada, deslocando-se para um lugar que era longe e perto ao mesmo tempo.
(Aprendera que a distância é um produto da intensa subjetividade em que nos debatemos.)
Era como se estivesse perenemente de atalaia. Sitiado por um feixe paradoxal de sentimentos: à distância higiénica do exílio, somou-se um instinto que não deixou encontrar cais num lugar que não mantivesse a cidade à mercê do olhar. Queria distância e vigiar a cidade, ao mesmo tempo. Não se desprendera das saudades da cidade, mesmo dela tendo partido para um exílio necessário.
Naquela noite, o sono foi colonizado pela insónia. Soubera que o arraial passaria a ter duas edições anuais. A outra, para coincidir com o Natal. Não há mal que sobre só – rematou, com visível desprazer pela notícia acabada de sair.
A córnea da linguagem solta-se do freio e inventa uma gramática. Como um pisa uvas que transforma o mosto e deixa sem segredos a quimera do vinho. É o pensamento em riste contra as mordaças que se levantam e tornam baço todo o tempo limítrofe, condenando os lugares a serem fronteiras sem remédio. Contra o silêncio autoimposto que se mobiliza pela vergonha de fazer aparecer o pensamento próprio.
Um dia, perguntei-me: não te incomoda levantar os segredos do pensamento quando o mostras nas palavras que se desocultam dos segredos interiores? Não te assalta o desassossego da sindicância pela lupa intransigente dos demais? Logo agora, que tantos espíritos lúcidos congeminam a prontidão da crítica áspera, no desfazer de cima a baixo do que em letra de forma se sujeita ao escrutínio exterior?
Não me desassossegam as sentenças vertidas sobre o pensamento próprio. Pior seria se escondesse o pensamento; ou se o afeiçoasse ao espírito dos tempos, acomodando-o aos cânones, ou a um cânone dominante, para aplacar a ira desembestada que subiu a cena com a democracia da opinião (ou a opinião democratizada) que é um farol deste tempo. Seria refém do meu próprio sobressalto se escondesse o pensamento, quando ele morde os calcanhares dos habilitados pelos cânones e os morde em pontos sensíveis.
Contra as mordaças que conspiram contra a vontade sem donos, o pensamento em riste. Como se fosse lava propositadamente cuspida contra os contrafortes onde se refugiam os artífices da habitualidade e os seus seguidores acríticos. Dessa lava que não profana, uma lava profícua que deixa em forma de promessa o húmus onde medra um novo pensamento em riste. Um pensamento que se subleve contra o pensamento de que sou mecenas, de preferência.
Não me apoquentam as sindicâncias ao pensamento que se traduz em forma de letra. Não quero ser fautor de imperativos categóricos e de verdades que se impõem por usucapião das almas. Promover o conhecimento público de um pensamento é a melhor maneira de subir a um banco dos réus onde se manifesta uma justiça popular. Para quem não tenha estômago, ou não esteja habilitado a compreender a puída natureza humana, a exposição dos julgamentos às ideias patenteadas pode representar um estrénuo ataque pessoal. Não é o caso. São os autonomeados juízes públicos a reivindicarem o seu pessoal uso da democracia democratizada, atiçando a bílis contra o pensamento em riste.
Ou ir à piscina e levar a água de casa. Ou ir à feira popular e levar o cinto de segurança e o milho para fazer as pipocas, sem esquecer um recetáculo para o vasilhame não afear os arruamentos do lugar. Ou ir ao café e levar as cápsulas e, por que não?, até as chávenas, a colher e o açúcar. Ou andar de avião e ser obrigado a trazer as proteções que higienizam o lugar onde a cabeça assenta. Ou, já que Miguel Esteves Cardoso propõe levar comida confecionada em casa para o restaurante, também se pode levar o resto – talheres, copos e guardanapos, como dose mínima. Ou ir ao teatro com a predisposição para contracenar, sendo ao mesmo tempo intérprete e espetador da peça de teatro. Ou ter, como condição de acesso a uma livraria, começar e depois continuar a escrever um livro. Ou ir a um combate de boxe e levar as luvas e a goteira que protege os dentes de um assalto mais violento do adversário, para o caso de ser arregimentado para o ringue.
Assim como assim, ele há empresas onde os trabalhadores levam o equipamento necessário de casa, e os titulares da empresa elogiam o gesto dos “colaboradores”, que na língua de trapos da gestão moderna seria sinónimo de um “empreendedorismo” louvável, quanto mais não seja pela poupança de recursos aos detentores do capital, que, desse modo, mais depressa substituem o BMW de serviço por outro mais moderno e “preformante”.
(Altura em que são devidas públicas desculpas por ter fundido, num só parágrafo, linguagem marxista e a língua de trapos da gestão moderna, numa dupla heresia que me expõe ao açoite público de uns e outros.)
Ou então, ainda, ir às aulas e dispensar o professor, pois qualquer avatar da inteligência artificial desempenha melhor a função. E, já agora, as universidades deviam assinar contratos-promessa com os estudantes, ajuramentando a entrega do diploma ao fim do período definido para o grau, sem que os estudantes tenham de fazer um único exame ou assistir a uma só aula. Para que depois saibamos que, numa audiência de trinta estudantes, nem um sabia o significado de “perenidade”, e mais assustados ficaram quando o lente informou, com indisfarçável deleite, que uma palavra sinónima é “imorredoiro”.
Tudo isto, ou a absurdidade refinada de Miguel Esteves Cardoso.
“As nossas cabeças são redondas para que as nossas ideias possam mudar de direção”, Francis Picabia, citado por Pedro Norton, in Público, 24.09.25, p. 9.
Começo por um lugar-comum, mas que nem assim perde acuidade esta perplexidade que trespassa um observador atento ao mundo: a exacerbação de ideias; a retórica engrossada; o esvaziamento da moderação, substituída pela reação instantânea e febril; o menosprezo do adversário, depressa conduzido ao estatuto de inimigo; o inimigo assim entronizado deixado à mercê da artilharia pesada, metafórica ou nem tanto, constituindo-se como alvo a abater – numa palavra, o radicalismo que já não toma apenas conta da pele, embebendo-se no âmago das almas que habitam o espaço público.
Sem receio de o dizer, este é um cenário que já é dantesco. Com a agravante de que são repetidos comportamentos passados na flagrante exibição do desconhecimento da História; e com a agravante, de sinal contrário, que, contudo, não deixa de alimentar os que pretendem combater, dos que inventariam a História para tecer analogias extemporâneas (porque, ao contrário de muitos que se servem da História para instrumentalizar ideias e debates, não encontro provas de que a História se repete).
Este não é um manifesto ou uma manifestação de pessimismo antropológico. Podia ser, porque o mundo coevo não é recomendável. Os radicalismos (o plural é significativo) são uma das medidas da depressão coletiva. De um lado, os procuradores desses radicalismos, inebriados pela certeza irrebatível das suas verdades, mesmo que sejam alicerçadas num rosário de mentiras, atiram os seus determinismos aos demais. Do outro lado, os contrarradicais que partem do combate àquele radicalismo e se emprestam à usura de um radicalismo de sinal contrário: para combater o radicalismo de que não gostam, extrapolam o que poderíamos ter se esses radicais tomassem conta do poder.
Dialogar tornou-se impossível. As palavras deixaram de ser a medida legítima do debate de ideias. Em seu lugar, surgem a desqualificação do outro, a teimosia de sair vencedor de uma discussão, a maledicência e o ataque pessoal quando os argumentos começam a ficar rarefeitos, no limite, o ataque físico e as vidas que são abreviadas pela violência grotesca.
Apesar do pessimismo antropológico, a segunda parte deste texto convoca a boa moeda que ainda podemos encontrar, pese embora os tempos plúmbeos em que estamos imersos. O dissenso dos ares carregados dos tempos que correm mobiliza uma atitude diligente que invista no sentido oposto. Ocorre-me o pedagógico compromisso com a tolerância, por exemplo. A quem for dado o privilégio de ocupar um lugar onde a pedagogia junto dos outros é exercida, que a oportunidade seja agarrada para ensinar que é preciso saber respeitar as ideias diferentes das nossas, sem cuidar de saber se têm algum, escasso ou nenhum cabimento. Os debates são para fruir na troca de ideias com os outros, não para corresponder à corrupção contemporânea que instala nas pessoas a convicção de que têm, porque têm, de sair triunfantes do debate. Pelo contrário: participa-se em discussões com os outros para aprendermos alguma coisa com eles. Seja construtiva essa lição. Ou, pela negativa, para que nos situemos de forma fundamentada quando temos a lucidez de conhecer as divergências que nos separam.
Outro exemplo: as leituras. Reduzo o exemplo às leituras que tratam de ideias (filosóficas, políticas, económicas, sociológicas e de outras áreas do saber). Interessa continuar a ler os autores com os quais nos identificamos? A menos que a ciência seja reveladora de descobertas e que seja importante atualizar nossa bagagem de conhecimento na área, repetir autores nos quais gravitamos é começar a perder tempo (num tempo em que o tempo começa a escassear pela entrada no Outono etário). Ler os autores que estão longe das nossas ideias é que nos enriquece. As ideias que temos exigem o conhecimento daquelas que se lhes opõem. De outro modo, o conhecimento é parcial e amputado.
Quem me conhece ficaria admirado ao saber que ensino Introdução à Economia partindo de pressupostos, aplicando métodos e explorando temas que não quadram com as ideias que defendo. Faço-o em desafio aos cânones, por ajuizar que a Economia tradicional – ou a maneira tradicional de ensinar Economia – está divorciada das necessidades do mundo contemporâneo. Faço-o também como desafio pessoal. Sem me ter desfiliado de um mínimo das ideias que defendo, tento conciliá-las com um modo alternativo de entender a ciência económica. Quem me conhece poderá estranhar que leia mais depressa Kate Raworth em vez de Samuelson, Boaventura em vez de Scrutton, Zizek em vez de Nietzsche, Dostoievski em vez de Manuel Vilas, Neruda em vez de Herberto, ou Couto Viana em vez de O’Neill.
Talvez seja da madurez. A predisposição para saber o que os outros pensam, numa conversa com os que estão situados em latitudes diferentes das nossas, é um sinal de abertura de espírito e, se me é permitida a ousadia (ou, vá lá, a arrogância...), de inteligência. Com a melhor de todas as vantagens: se interiorizarmos este código de conduta, se entendermos que este é um método heurístico e, ao mesmo tempo, uma necessidade (e daí o seu utilitarismo – não fujo ao diagnóstico), distanciamo-nos do lugar puído em que se transformou o mundo que é nosso. À escala muito pequena do contributo individual de cada um, um nano-contributo, é certo, desvinculamo-nos desse espectro terrível que consome os dias presentes. Fica-nos reservada a consolação de não sermos fautores ou fautrizes destes tempos terríveis que nos assolam.
A cada um compete descobrir a janela que, depois de entreaberta, deixa entrar o ar cristalino que dissolve o ar puído que nos contamina.
Desabituada a ideia da beligerância, estilhaçada a agressividade que convivia com um certo código de conduta, desalinhados os insultos propedêuticos e todos os outros que fossem gratuitos ou onerosos, escondido o rosto seráfico que mobiliza os ladrões de almas, desanexadas do seu chão puído as palavras mesquinhas, cicatrizados os olhares invejosos que atravessam as pontes diligentes, desmotivada a boçal desconfiança que cresce entre os dedos do amanhã, esconjuradas as conspirações pueris que eram um agravo militante, desafiada a mentira com as suas próprias armas, desalfandegado o atávico pretérito impessoal como pretexto para a impassibilidade dos justos, amolecido o teatro onde medram os facínoras, despojados os tiranetes e os seus aspirantes, agora destinados à nudez como embaraço derradeiro, levados a juízo os apóstatas do porvir e os que levitam na pesporrência moral passando ao lado da sua irrelevância junto de quem julgam apascentar, tomados por junto os procuradores da estultícia no parapeito de um pelourinho imprescritível, alinhados em barda na deposição de um interior exílio, todos eles irmanados na maldade deslimitada, num tremendo arroto coletivo que arregimenta um não menos convincente vómito, eles que se abraçam nas águas purulentas onde se atiçam os operários especialistas em sevícias por encomenda, os que se fingem um fingimento enovelado por uma paráfrase de fingimentos desmultiplicados, fazedores de pesadelos contrafeitos, ardinas de jornais mitómanos, jardineiros de aleivosias canhestras, CEO da desverdade qualificada e juízes de olimpíadas infrequentáveis, paladinos de bandeiras impecavelmente apessoadas e, todavia, desatendidas, almirantes de doca felizmente seca que se adulteram numa grandeza que consome o derradeiro combustível do narcisismo, apóstolos de toleimas pernetas, exímios síndicos na blasfémia de algemar a vontade alheia, desfiguradores dos luares e dos entardeceres emblemáticos (ou não), todos juntos perante a madrugada inaugural que os desarma. E o resto, outorgada a indulgência máxima, retorna à idílica cidade que suplicava por redenção.
Que sindicato se candidata a procurador dos órfãos da estética?
Mobilizava-se a fome por arte antes que anoitecesse. Não que fosse improvável ver arte depois de anoitecer, era para impedir que as sombras se abatessem sobre as obras e elas se embaciassem o olhar inquisitivo. Brevemente – diziam os habituais adiadores que não se afligiam que o tempo os ultrapassasse por larga margem. E assim andavam, como se irrompessem em marcha atrás contra a estultícia apoderada.
Brevemente, como numa mesa de ténis de mesa, a bola atravessa incansavelmente a rede num vai-e-vem que deixa toda a gente azoada. Só se vê a bola a farejar a rede e a torturar cada lado da mesa por uns instantes; não se consegue ver os atletas. Mas dizem-nos que podemos acreditar que brevemente as suas identidades serão reveladas, e nós continuamos anexados pelo chão, obrigados a observar aquele fantasmagórico espetáculo apenas composto por raquetes e uma bola massacrada pelos nossos intrigantes olhares.
O verbo baço dos labirintos desempoeira-se até que sejam mátrias as manhãs compostas. Os cabelos compridos estão por conta do vento fresco que é bolçado pelo mar numa das suas marés-vivas. Alguém sussurra: agarrei o tempo com as mãos e agora já não sai daqui. Pobre a criatura que, desse modo, se enfeitiça por uma frivolidade: quanto tempo consegue manter o tempo aprisionado dentro das mãos antes que elas comecem primeiro a suar e depois a doer de tanto comprimir tanto o tempo dentro de si?
A avó, que passava por acaso a caminho de casa, é que a sabe toda: ora, se não tivessem compridos cabelos não eram varridos, eles e elas, por este vento destravado. Amanhã já não vai a tempo, a avó. A perenidade é uma falácia, já devíamos ter aprendido.
Quem diz “brevemente” não é tutor de uma promessa. Arrasta o seu cadáver antes do tempo até que “brevemente” desapareça do dicionário. Até que seja extinto pela porosidade das memórias que se estilhaçam no tempo. E depois, evoca aqueles tempos que só não eram mortos porque passavam o tempo a jogar ténis de mesa.
O poeta vagueava pela cidade, de preferência de café em café. Vagueava como se fosse um mercador à antiga, daqueles que oferecem os seus préstimos aos passeantes e às pessoas sentadas nas mesas e nas esplanadas dos cafés. O poeta oferecia pequenos poemas da sua lavra em opúsculos com o tamanho A6.
O poeta não queria saber se as pessoas ficavam com os pequenos poemas ou se os atiravam para o primeiro lixo à mão. Era seu dever não ficar à espera que uma editora o convidasse a publicar parte do seu espólio, como era seu dever não olhar para trás para saber do destino dos poemas oferecidos. Tinha como princípio não bater às portas das editoras, não tinha paciência para a falta de resposta ou para a resposta formatada que elogia muito os poemas – que até têm qualidade, mas o mercado não está para poesia de neófitos, a não ser que eles se autosubsidiem (e assim subsidiem os possíveis lucros das editoras). Se lhe perguntassem, o poeta diria que não aspira a ver os seus poemas publicados.
Por isso continuava a demanda quase diária, palmeando quilómetros pelas ruas das cidades, de café em café. Um dia conseguiu escutar, em surdina, o comentário desdenhoso de um executivo (vestia fato e gravata, impecavelmente apessoado): “este indivíduo vem sempre aqui oferecer uns papelinhos, nem sei bem o que isto é. Parece um disco partido, não sai do lugar e repete o que está a dizer”. Um disco partido! Uns papelinhos! O homem nem teve o cuidado de ver o que estava escrito nos papelinhos, podia ser o segredo para ganhar a lotaria, que o executivo não desdenharia toda essa abastança, isso é ainda mais certo.
A partir daí, o poeta itinerante escreveu uma mnemónica nas paredes da sala e do quarto: “discos partidos”. Não se ficou pelo singular, como propusera o executivo. Usou o plural: afinal de contas, a distribuição de poemas pelo vate não era um só momento, repetia-se quase todos os dias. Ele considerava que a cada dia que saía de casa para ser generoso à sua maneira, era uma vez a ser disco partido. Começou a chamar a si mesmo “discos partidos”. Chegou a pensar em adotá-lo como pseudónimo.
Um dia, alguém meteu conversa com ele, pese embora continuasse a deixar poemas à disposição dos clientes dos cafés sem cessar o passo, passando por eles a uma velocidade estonteante (ainda continuava a ser misantropo). Uma senhora sexagenária perguntou, entre duas inalações do fumo do tabaco, se os poemas eram repetidos e se conservava o original em casa. Timidamente, sem dirigir o olhar para a mulher, como se fosse um rapaz adolescente tomado pela insegurança da idade, balbuciou: “por que quer saber isso?” A mulher confessou que era por curiosidade ao tê-lo visto muitas vezes a distribuir poemas e, estendendo a mão, apresentou-se: “Lúcia, sou a Lúcia”. “E eu sou o Discos Partidos”. Depois da gargalhada sonora da mulher, acrescentou:
- Todos os dias o poema é diferente. Umas vezes feito de véspera, outras vezes aproveito o espólio e escolho um poema avulso. Não guardo o original. Tiro fotocópias e depois de oferecer todos os papelinhos perco o paradeiro desse poema. E, antes que pergunte, digo já: não lamento que o poema fique órfão de mim. Um executivo que em tempos me chamou, jocosamente, discos partidos, não imaginava como sou todo o seu contrário. Ele não se lembra de mim, apesar da sua figura ter ficado tatuada no mais fundo da minha consciência. Nunca mais quis conservar os poemas que ofereço.
A mulher, atónita com as palavras esbanjadoras do poeta que até então julgava ser mudo, sentenciou:
Em vez de nos atirarmos para o fosso à espera que venham os crocodilos, por que não desamarrar as mordaças que nos colocam na tangente da idade medieval?
Em vez de nos consumirmos como desiguais, por que não exaltamos o mínimo denominador para esconjurar os fantasmas que inventámos para nos sobressaltar?
Em vez de cairmos verticalmente em trevas ao acaso, por que não acendermos a candeia que em nós derrama uma luz resplandecente para anuirmos no melhor que temos dentro de nós?
Em vez de escolhermos intrincados nós de marinheiro como sentença da decadência, por que não derrotar os derrotismos e vestir um rosto desimpedido?
Em vez de sermos presas fáceis de um pesar secular, por que não olhamos sem ser em vão para o tempo promitente?
Em vez de acusarmos quem se nos opõe, por que não juntamos as dissidências como critério de superação, nem que seja para atestarmos a maturidade em atraso?
Em vez de fingirmos mentiras exuberantes, por que não nos lançamos de caras aos desafios de que não podemos fugir?
Em vez de sermos órfãos dos mares diletantes, por que não ocupamos as largas folhas de papel com poemas que sejam apenas poemas?
Em vez de jurarmos hinos e bandeiras depressa repudiados, por que não descobrimos os miradouros de onde podemos alcançar uma qualquer quimera (nem que seja irrelevante para os demais)?
Em vez de sufragarmos fratricidas diferenças, por que não as assumimos sem cultivar uma angústia tatuada?
Em vez de sermos vitimados pela perseguição apenas imaginada, por que não deixamos os outros serem quem querem ser?
Em vez de bolçarmos desconfiança metódica, por que não alijamos as cicatrizes para irmos ao futuro com a pele desimpedida?
Em vez de nos despenharmos nas coisas triviais, por que não inventamos um lugar que seja uma geografia familiar?
Em vez de sermos um adiamento consecutivo, por que não deixamos o tempo exercer o seu papel?
Em vez de sermos disfarces, por que não arrumamos as gavetas e deixamos a desordem ganhar a sua própria coerência?
Não havia flores no jardim da primavera. Não era por indiligência dos jardineiros. A terra estava cansada. O tempo até andara a preceito, com chuva suficiente e sol no tempo certo – o tempero próprio para uma colheita habitual.
A terra estava cansada de ser o amparo de tanta beleza de flores variegadas. Podiam dizer que a terra tinha inveja da constelação de cores que as flores ofereciam aos olhares limítrofes; que tinha inveja de os olhares se deterem nas flores e serem indiferentes à terra. Não era o caso. A terra sabia o seu lugar, sabe que nunca deixará de ser o ingrediente enegrecido e que uma paleta de cores não quadra com o seu lugar. Também sabia que, por ser rica, era o húmus de onde abotoavam as flores em toda a sua exuberância. O seu negrume habilitava as cores radiosas das flores sazonais.
A terra estava cansada porque ela também tem limites. Ser o alicerce contínuo de tanta beleza era uma responsabilidade que a terra não omitia. Se fracassasse, as pessoas ficavam privadas de toda a exuberância deixada em testamento vital pelas flores exemplares. Se falhasse, as pessoas nem desviavam o olhar para apreciar a nudez da terra.
Os jardineiros pressentiram que a terra estava doente. Carregaram vitaminas que reabilitam a terra. Não a souberam ouvir: a terra ter-lhes-ia dito que estava de boa saúde; apenas estava temporariamente incapacitada porque, à semelhança das pessoas que precisam de férias avulsas, a terra tinha de hibernar para estar a par da responsabilidade de ser o úbere de flores tão afamadas.
Se soubessem ouvir o bramido interior da terra, saberiam que ela pedia que se atrevessem a contar da frente para trás. As merecidas loas às flores exigiam um elogio proporcional à terra de onde manavam. Não era inveja; era uma reivindicação sindical da terra.
O nevoeiro matinal só não é miasmático porque ocupa parte da manhã, a parte mais bela do dia. Mas quando coloniza a manhã, ela afeia-se, beliscada por um fantasma sem convite que não se fez rogado para cobrir o dia infante com os seus tentáculos.
O dia começa frouxo. Como se não fosse suficiente, em abono do torpor geral, a aparente letargia demora-se no tempo (e faz o tempo demorar-se), enquanto as pessoas se acostumam à manhã que vem em seu socorro. Paira uma anestesia geral: dispararam os interruptores do dia, mas o dia está encalhado nos termos viciados em que devia ter prosperado. O motor de arranque do pensamento está avariado. Tardam, os mecânicos que podiam vir em seu auxílio. A alavanca do pensamento está encravada na conspiração que o desmobiliza. Agora, é do impensar que se fala.
Uns capitulam porque acreditam que há quem pense por eles, na sua vez. Demitem-se ao subcontratarem o pensamento. Desencomendaram-se da lucidez, pois o pensamento é (devia ser) pessoal e intransmissível. A subcontratação apequena-os, sem que se reforce a qualidade do pensamento de quem ativa o pensamento em nome deles. À abolição do pensamento próprio não corresponde qualquer enriquecimento do pensamento assim centralizado. Corresponde, outrossim, a banalização do impensamento, a armadilha que aproxima os apáticos da condição puramente animal.
Outros limitaram-se a desistir. O mundo não está de feição. É irrepresentável. Não é um lugar recomendável para se estar. Deixam de lado o pensamento, já não adianta arregimentá-lo para a insubordinação exigível contra o comatoso estado do mundo. Por desistência, deixaram vago o seu pensamento. Foi tomado de assalto por abutres vários que querem substituir a riqueza de todos os nano-pensamentos somados pelo vazio próprio de quem arroteia um impensar geral.
Diz-se adeus à autonomia da pessoa. O impensar é mais cómodo, levitando a tão desejada lógica de mínimos que é credencial de gerações várias. O império do impensamento devia ser a prioridade do pensamento. Se não vier a ser decretado extinto. Pois já poucos dizem “penso que é preciso pensar”.
O registo apocalíptico nunca deixou de estar agarrado às folhas do calendário, mesmo que elas sejam díspares no tempo. Perpassa um sentimento de crise perene. Por uma das várias causas que podem fermentar numa crise, os apóstolos do apocalipse esgrimem o anátema da crise como diagnóstico da sua contínua insatisfação com o estado do mundo.
Podem ter estirpes variegadas: os pessimistas antropológicos descrevem a humanidade como se ela estivesse trespassada por sombras inalienáveis; os que trazem a tiracolo a bagagem ideológica que, menos ou mais dogmática, se mobilizam contra as inúmeras desigualdades que não deviam ter lugar num mundo a caminho de um estado tão avançado de desenvolvimento; e todos os apóstolos da desgraça que, por razões pontuais e não sistemáticas (como as duas categorias anteriores), se insurgem contra o estado em que o mundo se encontra e acusam os responsáveis pelo impasse em que caímos; ao nível do conteúdo, as críticas podem ser fundamentadas em aspetos materiais (com ênfase na persistência de desigualdades) ou em questões do foro imaterial, sendo os valores trazidos à colação.
Nos últimos tempos, as atenções têm estado na crise de valores das democracias liberais. Relatórios vários, dados a conhecer por instituições não governamentais que atuam como observatórios da democracia, insistem no retrocesso dos valores que sustentam as democracias tradicionais. A oposição já não é apenas entre democracias e regimes autocráticos; as democracias meramente formais têm vindo a ganhar terreno e a adulterar o que conhecemos da democracia liberal. Começam a prosperar as “democracias iliberais”, uma contradição de termos.
Um dos piores sintomas que fundamenta o sentido apocalíptico contemporâneo é a invasão das democracias liberais por partidos, movimentos e personagens que se demarcam dos valores democráticos. A polarização dos radicais tem crescido à medida que o tempo passa, estendendo sua mancha geográfica. Emergem sintomas que se afastam dos valores da democracia liberal: a maximização da intolerância; a incapacidade para um debate esclarecido e civilizado, por não saber ouvir quem discorda de nós; a violência motivada pelas divergências entre diferentes, o derradeiro recurso que, lamentavelmente, tem-se transformado cada vez mais no recurso primeiro para resolver pendências. O atual sentir apocalíptico baseia-se na adulteração de valores que está a abastardar a democracia. O aumento do tom da violência, quer a violência que tem expressão física, quer da violência implícita que se extrai da incapacidade de reconhecer o outro e debater com ele, enxerta um odor pestilento a fim dos tempos. Com a agravante de que esse sintoma não é estranho a quem conhece a História do século XX (nem é preciso andar mais para trás). Cheira a apocalipse. Somos os náufragos desse apocalipse, com a democracia tradicional sitiada, e por dentro, pelos seus oponentes.
Em sentido contrário, há correntes otimistas que clareiam o ar pesado que é marca registada dos pessimistas. Não omitem o receio pelo retrocesso civilizacional que está a turvar as democracias tradicionais. Todavia, levam a análise para outros domínios que equilibram o diagnóstico sombrio. A inovação tecnológica que cresce a um ritmo alucinante, trazendo benefícios intangíveis à vida quotidiana de muitos; o aumento do rendimento, pese embora não seja compatível com a erradicação das desigualdades (como os otimistas são lestos a admitir), garante a satisfação de necessidades de outra grandeza, contribuindo para a melhoria dos níveis de vida; o aumento da informação e as facilidades para a sua obtenção que ajudam na formação das pessoas e na compreensão de certos fenómenos que, há pouco tempo, eram inacessíveis ao cidadão comum; tudo contribui para o reforço da cidadania ativa, sendo também a caução para a emancipação das pessoas de outras tutelas, visíveis ou que apenas se insinuavam, e que acabavam por limitar o potencial da cidadania. Para estes otimistas tecnológicos, o fator preponderante é reconhecer que as pessoas mais depressa são astronautas do que náufragos.
O confronto das duas visões antagónicas pode-nos deixar desorientados. Elas partem de pressupostos diferentes, de mundivisões que não se reconhecem mutuamente e de uma ordem de valores que dificilmente ordena um diálogo recíproco. Mas, sobretudo, porque o destino do Homem se expõe a uma fratura tão significativa que até parece que ambas as abordagens não estão a observar fenómenos contemporâneos e verificáveis na mesma geografia. Existe uma diferença abismal entre nos termos como náufragos ou como astronautas. Talvez seja possível fundir as duas perspetivas. Elas encerram um código semântico que não as torna tão incompatíveis quanto parece.
Somos, ao mesmo tempo, náufragos e astronautas, em doses variáveis de pessoa para pessoa, no mesmo lugar ou em lugares diferentes.
Diziam: a babugem, apenas a babugem, é o coalho estéril da viagem das pessoas pelo tempo. Antes fosse. Seria como branquear o rosto seráfico que desfeia os lugares por onde transita o tempo.
Antes fosse válido o diagnóstico. Vale como mero prognóstico, um desejo virado para o futuro, para que o futuro seja a favor; ou o desejo de procurar a sua materialização num tempo ainda ausente. A compensação pelo presente destravado, coado pelas janelas baças que são o mostruário da saliva ácida depositada sobre as vidraças puídas.
Talvez as janelas não estejam baças. Elas devolvem ao olhar o que está baço, encravando a lucidez, encostando-a a um labirinto gasto, gongórico, como se fosse um rio que perdeu a embocadura. São as palavras carregadas de malícia, as intenções pérfidas, as conspirações que desassossegam, um crepúsculo que torna os dias repetitivamente mortiços. As pessoas que se tratam como rivais, suprimindo a cooperação inata, as pessoas boçalmente ensimesmadas. A mentira desalfandegada. As tornas das vinganças que desmentem epifanias dos que se conseguem despojar da fibra do mundo à sua volta. O paroxismo do fingimento que desprepara a carne para as cicatrizes que estão para vir.
As janelas estão baças e talvez isso seja uma proteção outorgada. Através das baças janelas, não chega ao olhar nem metade do mundo na sua existência melancólica e torturada. Esbarra nas janelas baças que travam os males maiores se não tivessem a função de coar parte das aleivosias em que o mundo medra. Se não fossem as janelas baças, a avalanche do mundo que carrega a angústia às costas abater-se-ia sobre as vítimas. Não se diria que são vítimas inocentes. Muitos deles são os tutores dos extravios do mundo que se insinuam nas baças janelas protetoras.
Dantes, puxar o lustro às janelas era um dever. Agora, as pessoas deixam as janelas arrastar-se na sua puída forma. À custa do tanto saber, descobriram que as janelas baças são a proteção de que precisam para não serem trucidadas pelo mundo lá fora. São como o exílio necessário, uma fuga interior em proveito próprio, e não uma prova de descuido.
Dino Santiago vê-se “(...) mais português do que quase todos os portugueses” que conhece. O cantor também defende que a melhor maneira de esconjurar o fantasma da extrema-direita é experimentá-la no poder, outra vez. Juntando as duas partes da entrevista, interpreto o excesso de portugalidade de Dino Santiago como uma provocação bem pensada para desafiar os zeladores da portugalidade que, como é sabido, se encontram no bairro da extrema-direita.
Começo a escrever este texto sem ainda ter lido a entrevista. A frase de Dino Santiago dá que pensar. Não pela possível provocação, que terá desalinhado os cristais de muitos adeptos do Chega, mas pelo que ela significa. Impõe-se uma pergunta: podemos medir a portugalidade de uns e de outros a metro? Em caso afirmativo, quais são os critérios que permitem aferir a portugalidade?
Quando alguém se diz português a oração remete para a pertença, um sentimento de identidade que se fundeia num substrato cultural e histórico, mas que não pode perder de vista a sua significação política. Os Estados são entes políticos e a pertença nacional (ou a identidade, dependendo de como encaramos o fenómeno) é ainda em grande medida aferida na relação que estabelecemos com um Estado-nação. E se a palavra “ainda” aparece a meio da ligação entre o cidadão e o Estado é porque a modernidade contempla fenómenos e formas políticas que têm amortecido a predominância desse vínculo.
Por um lado, há quem dirija a lealdade política para níveis infranacionais, reconhecendo no regionalismo, ou até no localismo, o fator preponderante de identidade. Por outro lado, à globalização imparável correspondem formas políticas supranacionais (União Europeia; outras organizações internacionais) que enfraquecem a pertença nacional. Por fim, acontece com maior frequência a pulverização de pertenças. As pessoas não se identificam apenas com um dos níveis mencionados, reconhecendo múltiplas fontes (sub e supranacionais e até extrapolíticas) que constituem o cimento da sua identidade política.
Suponho que a declaração de Dino Santiago enfatiza a dimensão histórico-cultural da portugalidade. Desconto o prazer que sinto ao adivinhar a turba de adoradores de Ventura a darem cambalhotas na atmosfera depois de lerem, ou de lhes terem feito chegar, a frase do artista. São eles que ainda acreditam na “raça lusitana” – com a ajuda do primeiro-ministro que, ao celebrar proezas desportivas de atletas nacionais, convocou a “raça lusitana” repetidas vezes – e na exaltação da pureza da portugalidade como ideal messiânico.
Imagino uma peça de teatro que tome de empréstimo a metáfora da portugalidade para apurar a métrica da portugalidade de uns e de outros. Assim seria a lista: clássicos da literatura portuguesa; História de Portugal; usos e costumes que ordenam as relações sociais; gastronomia; romarias e festas populares; estatuária e sua representatividade; pintura e escultura que definiram um escol; domínio do idioma sem significativos atropelos gramaticais (pois se é uma exigência de atribuição de nacionalidade aos estrangeiros); hino nacional (e, para fazer a vontade aos radicais de direita que continuam sem sair da sacristia, saber o “pai nosso” de cor); instituições, seus titulares e suas competências; para os mais puristas, que ligam à genealogia dos nomes patrícios, os nomes que exibem o perfume da pureza da portugalidade.
Também imagino como a seriação seria em alguns casos problemática. Porque muitos patrícios há que conhecem Camões, Camilo, Pessoa ou Herberto apenas de nome (e, alguns casos, nem isso); outros reprovaram a História, ou não passaram de uma nota medíocre; alguns estão à margem de certos usos e costumes porque não se reveem pessoalmente neles (se moro em Ovar sou obrigado a gostar do carnaval? Se moro na lezíria tenho de ser aficionado da “festa brava”?); outros recusam iguarias que constam dos manuais de gastronomia típica (os sarrabulhos e outros pratos com sangue de animais causam-me repulsa); alguns emigram na altura de romarias populares para se porem a salvo do chinfrim; outros passam diariamente por estátuas e nunca dedicaram um minuto a saber quem é são essas personalidades; alguns não sabem o que são os Painéis de São Vicente de Foram ou quem foi Maria Vieira da Silva ou Cargaleiro; muitos, até os mais eruditos, tropeçam nas armadilhas do idioma; quase todos os que sabem o hino de cor não se detêm uns minutos para o sacrificar na necessária hermenêutica (o comodismo leva a palma); muitos não sabem os nomes dos edis, ou de ministros com a tutela de pastas que os afetam, ou o que podem as instituições fazer pelos problemas quotidianos; e alguns que perseguem os muçulmanos por serem responsáveis de uma conspiração para desmontar a civilização ocidental enquanto escondem o nome Cid que está no cartão de cidadão.
Termos em que se mobiliza uma pergunta irrecusável: que serventia tem esta aritmética da portugalidade, senão para alimentar um pueril concurso em que os proponentes exibem as medalhas para saber quem chega mais longe em pergaminhos de portugalidade. Como se isso fizesse alguma diferença.
Entretanto, li a entrevista de Dino Santiago. O artista justifica a sua extra-portugalidade por conhecer a geografia e as gentes ao percorrer o país de norte a sul, do litoral para o interior, para os concertos que dão a conhecer a sua música. É muito pouco para alicerçar uma portugalidade além da portugalidade da maioria dos portugueses que conhece. Nem sei se isto não é uma espécie de xenofobia invertida.
Ninguém está preparado para a partida. Ninguém dissolve as memórias quando os preparos de uma partida tomam conta do tempo por algum tempo. Mesmo quando se pensava que o tempo da despedida prescrevera, a exaltação da memória reaviva os efeitos telúricos da partida. Mesmo quando a partida foi uma bênção, a despedida pode empolar a memória futura.
Por que precisamos de dizer adeus?
A simplicidade apurar-se-ia se as convenções prescindissem da despedida. É assim que somos educados. Dizemos olá num começo e dizemos adeus quando o tempo é tingido por um fim (temporário ou definitivo). Não desligamos o telefone sem dizer adeus ou um seu eufemismo. É cultural. Vamos a outros lugares e vemos filmes que retratam outras culturas e as pessoas e a despedida é seca, sem palavras; as pessoas não precisam de dizer “até amanhã” ou “adeus”, ou outra fórmula que sintetize a despedida. Se há uma despedida, ela é intuída nos silêncios que rematam uma conversa. Pode ser que nesses lugares as pessoas tenham medo de dizer adeus, que o adeus se transfigure num definitivo e soe a pressentimento.
Podíamos prescindir das despedidas. Apenas nos cumprimentaríamos num começo. Nada diríamos quando nos deixássemos uns aos outros, fosse para nos voltarmos a ver amanhã ou sabe-se lá quando, ou talvez nunca mais. Liquidaríamos o adeus, até por causa da etimologia da palavra. Ou, o que é mais significativo, da carga negativa que uma despedida pode ter.
Em tempos ouvi um poeta dizer que não devíamos dizer adeus numa despedida. A riqueza do vocabulário traz múltiplos eufemismos para o adeus – até podemos congeminar linguagem cifrada, para esconjurar os maus-olhados de uma despedida. O equívoco da despedida não estava saldado. Dir-se-ia adeus por interpostas palavras, mas seria um adeus. A angústia do adeus não seria erradicada.
Fazer uma despedida sem dizer adeus é uma forma de dizer adeus por outras palavras. Talvez porque a despedida é um bálsamo e fique tatuada, para memória intemporal, na pele de quem diz adeus e de quem o ouve.
De tudo o que sabia, a fulminante, voraz moratória das intenções destratava o lugar. Havia, como dizer?, desmodos, boçalidade escorrendo pelos poros a salivar em forma de palavras, como se tivessem sido expropriadas dos esgotos e estes tivessem, enfim, ficado vazios. Enfim, havia pessoas. Dizias: “mas se os esgotos ficarem vazios, a cidade tornou-se inabitada”. Talvez. Vejo que te desimportas das pessoas. São matérias para a palavra sempre sábia do senhor presidente da república.
De todo o modo, as incumbências acamavam umas em cima das outras, como acontece com a literatura de mesinha-da-cabeceira que vai sendo empilhada e empilhada porque o sono nunca é contumaz e, mal chegas à cama, o sono vence tudo. “Às vezes, notava o cheiro da maresia até em hotéis que distavam centenas de quilómetros do mar”, dizias, quase suplicando para acreditar nas fantasias que congeminavas. Eu encolhia os ombros, permanecendo estático. Era apenas um encolher de ombros pensado.
“Alguém se esqueceu do cachimbo ali na mesa do lado”, disseste, enquanto tocavas com o cotovelo no meu braço. Ainda tinha uma réstia de fumo, o aroma a caramelo a insinuar-se a meias com a maresia que, desta vez, era a sério (a esplanada era marginal ao mar). “Quem se esquece de um objeto tamanho?” (Estes cachimbos são quase obras de arte.) Lembraste-me que sou pródigo em deixar o paradeiro das coisas onde elas se encontram temporariamente (e depois de perdidas, sabe-se lá para quando): os guarda-chuva, um telemóvel, a chave do carro, canetas (várias), óculos de sol, um cartão multibanco – às vezes, o juízo.
- Tens razão. Mas nunca deixaria um cachimbo condenado à orfandade.
- Pois não, tu não fumas, é o que te safa deste paradoxo.
Sempre gostei da palavra paradoxo. À medida que envelheci, fui ficando alérgico à coerência. Logo eu, tão intransigente com a dieta da coerência na juventude. Como me aborrecem os sacerdotes de uma-coisa-qualquer que erguem o dedo em riste quando alguém é apanhado a patinar numa incoerência. Deviam inventar inspetores especiais para estas pessoas. Só para as apanhar em contramão e expô-las para gáudio dos simples mortais que não dão conta que enfermam da doença geral da incoerência.
Disse: “sempre gostei de paradoxos”. As contradições internas que nos atiram em solavancos, de um lado para o outro do pensamento, à mercê das ondas que se sobrepõem às demais e nos levam, por instantes, a ser o que vemos desmentido logo a seguir. Não somos menores por termos a incoerência bem cultivada. Cuidamos dela, como se precisasse de ser apascentada.
- Não me censures por ser tão amigo dos paradoxos. É o meu desporto favorito, depois de glosar Nietzsche.
Este é o celeiro dos exemplares únicos, o úbere cheio de visionários, aqueles sempre diferentes dos demais que não reconhecem que esse é um atributo abonatório de todos sem exceção. Uma pradaria imensa onde cabem uns poucos, convencidos da sua singularidade, ufanos de tanta tinta distintiva que os torna únicos.
Este é o lugar onde afocinham eus descomunais que proclamam a sua excelência, sem saberem que a excelência entre ímpares não constitui marca distintiva. Ser primus inter ímpares é anunciar espalhafatosamente que eles são únicos e, por definição, estão no topo da cadeia alimentar. Se não fossem tão sensíveis à sua singularidade, a ostentação das comendas faria a diferença.
Este é o tempo em que a singularidade é confundida com originalidade. Os seus procuradores ensaiam uma teoria que contém no enunciado a sua própria negação. São tão únicos que nisso são indiferentes de todos os demais de quem reivindicam, com exuberância, serem diferentes. Todos são diferentes e isso seria cláusula suficiente para encher o planeta com espécimes ímpares. Fora dos circuitos dos que se autoadoram, entre os que não se incomodam em serem indiferentes para os demais, a singularidade não passa de um anátema exclusivo dos que passam pelo mundo com o seu ar muito afetado.
A própria condição – ser primeiro entre todos – é uma infantilidade grosseira. Mesmo os predestinados, os que saltam a vara do conhecimento e fornecem pazadas de novo conhecimento, ou os que entram para a galeria dos imortais, sabem que todos somos singulares, mas feitos de carne e sangue idênticos. Diferimos na semelhança; somos semelhantes na diferença. Não perdemos o sono por causa disso, exceto os que consomem regularmente espelhos grandes para de si mesmos terem uma dimensão a condizer. Acabam a ser os maiores clientes de antidepressivos e pílulas para dormir.
Ser primus inter ímpares tem tanta importância como o campeonato dos últimos. O primeiro coincide sempre com o último.
Há orfandades que ficam tatuadas no fundo da alma. Tatuadas com uma tinta invisível que desmente passaportes. O autêntico lugar do nascimento não é o do nascimento físico. Às vezes, passam-se anos e anos até que as pessoas encontrem o seu autêntico lugar de nascimento. Não precisam de emendar a naturalidade no passaporte. Ela fica automaticamente embebida na fundura da alma, com a tinta invisível que reinventa uma identidade.
Outras vezes, a orfandade da pertença estende-se pela vida fora. Não é o lugar do nascimento que se oferece como âncora. Também não é qualquer outro lugar entretanto descoberto na convulsão de uma epifania pessoal. É uma terra de ninguém, povoada apenas por quem rejeita todos os lugares que pudessem servir de estuário onde estendem a duração de uma vida, inteira ou em fragmentos. É uma terra propositadamente de ninguém que investe na pessoa que a demanda e não o contrário, que o uso é as pessoas investirem em terras.
Não é fraqueza irremediável reconhecer que se é de uma terra de ninguém. A definição é equívoca. Ninguém sabe onde é a fronteira entre uma terra de ninguém e outra terra de ninguém; podia-se discutir se a terra de ninguém é um imenso baldio que trespassa as fronteiras, as físicas e as inventadas pelos Homens no seu afã de serem diferentes uns dos outros; ou até especular, com a ajuda da teoria e da ideologia, se a terra de ninguém precedeu os marxistas, sendo, abjurada pelos apóstolos do capitalismo tão arreigados ao direito de propriedade.
Todas essas questões são espúrias, levitam com a mera espuma dos dias de quem evita o significado profundo da terra de ninguém e de como alguém que se considera ser de uma terra de ninguém não é um apátrida. A terra de ninguém é aquele território conhecido apenas por quem o reclama como a tinta invisível que se tatua por dentro da alma. Ninguém mais tem de saber onde fica a terra de ninguém.
Que sei eu? Apraz-me saber da arte das interrogações. Não ficar confortável com as respostas que parecem parar o tempo, assim que um rebite do conhecimento se engasta na imensa totalidade do mundo. Ando com uma prolixa carteira de perguntas escondida no pensamento. Não a revelo antes do tempo; só quando a urgência do momento dita o seu parto é que se torna conhecida uma das perguntas que estavam em lista de espera.
Fujo do conhecimento que não conheço. Deixo-o para os peritos, que podem me ajudar a acender alguma luz na questão até então inacessível. Do que fujo é dos especialistas em tudo-e-mais-alguma-coisa, gente encartada em saberes diversos e variados. E fujo daquela multidão que não parte de um princípio de autoexigência e se satisfaz com a mistura de lugares-comuns, inexatidões e erros, entre o deslize sem grandes danos e o erro grosseiro, de que os versáteis sábios são pródigos.
O que sei, procuro saber de fonte segura. Com a ciência como fundamento, cruzando saberes diversos que se completam e cotejando os lados diferentes de uma controvérsia (quando ela é anotada).
A tutela da humildade é não sermos passageiros da aventura da ignorância ou da viagem da desonestidade. Assenta num módico de humildade e termina com o respeito pela honestidade consigo mesmo. Os peritos em tudo-e-mais-alguma-coisa não respeitam as duas condições. Há os que se distinguem na desarte por serem vítimas de um voluntariado acidental. E há os que se promovem na intencionalidade do logro, não alcançando que vivem cercados pela mentira de si mesmos.
O que sei é a soma aritmética do que fui poupando pelo tempo que foi sendo generoso no conhecimento que às minhas mãos veio parar. Rejeito imperativos categóricos, pressupostos inamovíveis, saber muito de cor para não prejudicar a cor do saber. E deixo ao silêncio o preço do desconhecimento, para saber ser o contrário do que são os vendilhões do saber.
Atravesso as planícies bordejadas pela luz do sol enquanto os minutos se antecipam na clepsidra dominante. Rumo, não fujo. Num pulsar interior que ferve as veias, aproveito o espaço isento de fronteiras para me desapossar das terras conhecidas enquanto parto em demanda das que não conheço. Parto sem rota nem mapas. Sigo o mapa interior que costura as bainhas da viagem.
Vou emoldurando na memória os fragmentos visíveis. Uma cordilheira montanhosa, um rio caudaloso, uma planície levemente ondulada, uma cidade apessoada, um cais decadente que outrora foi imagem de grandeza, as vozes dos diferentes idiomas, as diferentes camas de hotéis que foram testemunhas do sono, os sonhos, entretanto, amoedados na alquimia da viagem, a certa altura, os diferentes alfabetos que dão voz à toponímia, os pores-do-sol que são diferentes em diferentes ocasos. Afinal, há fronteiras com modos tradicionais. Polícias mal-encarados, sempre desconfiados, enquanto inspecionam o passaporte, alternando o olhar ameaçador entre o passaporte e meu rosto, como se desencorajassem de continuar a viagem.
Prossigo, ainda sem rota a não ser a que já ficou desenhada no inventário do passado. Há de ser uma volta ao mundo ou uma volta a qualquer coisa que esteja alinhavada no horizonte mental. Se calhar, amanhã tenho saudades e dedico-me ao regresso – em viagem direta, ou a mais direta possível, ou através de outra viagem que não repita a rota testemunhada. Ou prossigo a demanda, marcando no mapa mental as cidades, os lugarejos bucólicos, as pessoas inesperadas, as estradas sem marcação, os idiomas mais ininteligíveis que açambarcam a medida da distância. Cada dia será soberano da sua vontade; ou hei de ser o soberano da vontade que se levanta na orla de cada dia, tingindo-a com as suas estrofes.
No fim, serei eu e todos os quilómetros palmilhados. A distância que mede o espaço que se deita sobre mim, habilitando-me à riqueza inestimável que é a geografia dos deslimites. Talvez pondere escrever sobre a viagem, a menos que descubra que as crónicas de viagem estejam na ordem do dia. Caso em que guardarei, em segredo interior, as crónicas de uma viagem que em mim fizeram crescer a noção dos meus próprios deslimites.
(Em registo propositadamente acarinhado pelas esquerdas que, todavia, sendo da autoria de um dos seus pode provocar abundante cirrose intelectual)
Podia ser que a comiseração fosse suficiente para desviar as atenções – como se diz, na linguagem do povo, é feio bater em mortos. Mas há personagens que insistem na risibilidade, espécimes autênticos de um erro de casting, que teimam em colonizar o espaço público. Personagens que foram meteóricas no passado e que, entretanto, deixaram de estar nas boas graças do povo que se desviou para outras estrelas em ascensão (até o futuro as poder arrematar como as próximas estrelas cadentes) ou, ó heresia que tanto magoa, para a direita mais à direita.
Já foi mais do que insinuado, até pela tal estrela ascensional, que as esquerdas foram maltratadas pelo escrutínio popular. Dizê-lo não é tão inocente quanto se possa supor, nem a proclamação deve ser interpretada no sentido literal: o povo que maltratou as esquerdas (com a exceção de quem assim o diagnosticou) não prestou justiça à bondade intrínseca com que essas esquerdas se apresentam em público. Por outras palavras, e sem atalhos, o povo que se desviou para a direita foi tremendamente injusto com as esquerdas. Já se sabe com o que podemos contar quando o meteoro do momento das esquerdas for punido nas urnas: se reagiu assim sendo o único a ter motivos de contentamento, imagine-se como será no dia em que o povo deixar de ser soberano porque abandonou o partido do Tavares à orfandade previsível.
Já a Mortágua tem vindo a passar entre os pingos da chuva sem se molhar – mas agora está a jeito de uma borrasca marítima por ter embarcado numa flotilha com destino à Palestina. Não prescindiu da habitual pose de quem exibe a irrevogável superioridade moral, nem se (e nos) desabituou da verve evangelizadora, mesmo tendo sido vítima de uma flagrante derrota eleitoral. Mantém-se fiel ao seu estilo, ela também já permeável aos fabricadores de imagem que abundam entre os partidos gémeos que dominam o sistema político. Ou seja, ela continua certa; o povo é que errou, ao retirar o voto às esquerdas radicais.
Não sei quem quer ser Mortágua, mas por estes dias os candidatos a sê-lo devem ter um estômago de ferro. Não é para qualquer um desafiar o Mediterrâneo desde Barcelona até às águas da Palestina. Atravessar todo esse mar, de uma ponta à outra, em pleno Verão, será um bálsamo para os que enjoam nas demandas marítimas – o mar, habitualmente chão que se põe no Verão, seria presságio de uma navegação calma. Mal zarparam de Barcelona fizeram marcha atrás para que a flotilha não tivesse de enfrentar uma tempestade. Parece que até os deuses conspiram contra os patriotas da democracia que embarcaram rumo a Gaza. Não demora muito e vamos ouvir oráculos prescientes a garantir que deus, em quem não acreditam, conspira a favor dos judeus.
Mortágua é uma distinta passageira da flotilha a caminho de Gaza. Já que as coisas andam de mal a pior pela terra-mátria, o melhor é refugiar-se num indiscreto exílio que não se chama exílio, mas não deixa de ser um exílio. Que se lixem as eleições autárquicas – para grandes males que se anteveem, antes as boas companhias (até de torcionários intelectuais com pergaminhos comprovados) que povoam a flotilha. Ou seja: já se foram os dedos, mas os anéis não deixam de cantar na incorrigível prosápia da Mariana.
No meio desta confusão, até parece que fica mal denunciar o genocídio em Gaza perpetrado por Israel sem ir de braço dado com estes ativistas agora marinheiros. Esse é um dos maiores desafios dos tempos que vivemos. Nem que seja para provar, pela enésima vez, que na política quase tudo não é apenas preto ou branco.
E o Tavares, não embarcou na flotilha porque enjoa, ou tem medo de se molhar?
Uma inspeção cuidada à lua revela que não foi inventariada uma lua velha. E, todavia, a lua já é mais velha do que muita da História, o que seria suficiente para promover uma lua anciã. Talvez os habituais embaixadores de conspirações venham denunciar uma conspiração contra a terceira idade (uma parte do idadismo que conquistou espaço no vocabulário em curso): até a lua é omitida quando se peticiona a hipótese de existir uma lua velha.
A lua velha era uma boa ideia. Não para agradar aos descontentes do idadismo, mas para aproveitar as regalias que a experiência da idade nos lega. A lua velha seria um oráculo. Podíamos ler as suas cicatrizes para perceber que danos haviam sido causados para que essas cicatrizes tenham ficado tatuadas na pele da lua. A pele da lua seria um mapa a desvendar o sarcófago do futuro, para os interessados.
A lua velha seria a caução de todas as luas que estivessem por nascer. Elas não nasceriam órfãs, como se supõe ao apreciar a lua nova como uma fugaz e pouco nítida sombra que prenuncia o enchimento posterior que dará origem às várias fases de uma lua. Quando nascesse uma lua nova sabendo da existência de uma lua velha, ela não ficaria desorientada no remoto horizonte, quase anónima por a lucidez terrena não ter meios para a retratar.
Pela lua velha passaria toda uma sorte de perguntas. Como se fosse um arquivo vivo e imorredoiro, que não há suspeita, formulada por peritos, da futura morte da lua. A lua arcana tem recursos capazes de resgatar do passado as respostas que satisfazem as demandas feitas. Seria como os anciãos em quem é depositada a responsabilidade de prover o destino comum.
A lua velha não envelhece mais. Ela atingiu um estado de envelhecimento perpétuo e insuscetível de posterior decadência. Seria uma lição para os mortais que se amedrontam com a temível espada do envelhecimento. Por via das dúvidas, os tementes podem respeitar o sortilégio dos vinhos envelhecidos que se distinguem dos demais como vinhos de superiores pergaminhos.
Faço de conta que as mentiras não são mentiras. Despojado pelo fingimento, fico, sem embaraços, à mercê do meu próprio julgamento. Como se fosse preciso um desnudamento; ou melhor, o virar do avesso para conhecer a têmpera revelada nesse avesso diacrónico.
Os dias avassaladores encavalitam-se uns nos outros. Suplicam uma trégua que seja outorgada em resultado da bondade de quem a tutela. Penso que a avareza do tempo não autoriza o desfingimento que se estilhaça contra as verdades que se levantam num movimento de contrafação. Se houvesse claridade o tempo todo, não haveria como esconder a mentira da mentira. Nem seriam precisos faróis de nevoeiro para rasgar a penumbra recalcitrante.
Nem assim ficam caídos os braços. Não me intimidam os sobressaltos averbados pelos deuses que conspiram contra a linearidade do tempo. Por mais que a usura da mentira se deslace do entendimento do tempo, há sempre omissões, intencionais ou sem querer, que se abstêm sobre um momento preciso. E entontecem a lucidez, que fica à mercê das interrogáveis circunstâncias que tomam conta de um tempo. A absolvição vem de dentro, sob os auspícios de uma objetividade delimitada.
Sei que sou refém de todas as coisas que correm por fora de mim. Às vezes, é a verdade – a tirania da verdade – que me situa numa medida exterior a mim. Como se fosse o frágil navio entregue ao acaso dos mares, incapaz de domar as marés que se estilhaçam no meu convés. Mas nem esse castigo me sobressalta. Os contratempos não se resolvem com preces avulsas ou epifanias fingidas.
O dia ultima a sua litania. As vozes atiram o fogo vetusto contra a urdidura do passado. Se hoje finjo, é para adulterar a mentira. Já diziam os matemáticos: dois negativos anulam-se num resultado positivo. Os provérbios ficam por conta das mentiras obnubiladas.