29.9.25

Pensamento em riste

Hooverphonic, “Out of Sight”, in https://www.youtube.com/watch?v=AZTdZAScPbg

A córnea da linguagem solta-se do freio e inventa uma gramática. Como um pisa uvas que transforma o mosto e deixa sem segredos a quimera do vinho. É o pensamento em riste contra as mordaças que se levantam e tornam baço todo o tempo limítrofe, condenando os lugares a serem fronteiras sem remédio. Contra o silêncio autoimposto que se mobiliza pela vergonha de fazer aparecer o pensamento próprio. 

Um dia, perguntei-me: não te incomoda levantar os segredos do pensamento quando o mostras nas palavras que se desocultam dos segredos interiores? Não te assalta o desassossego da sindicância pela lupa intransigente dos demais? Logo agora, que tantos espíritos lúcidos congeminam a prontidão da crítica áspera, no desfazer de cima a baixo do que em letra de forma se sujeita ao escrutínio exterior?

Não me desassossegam as sentenças vertidas sobre o pensamento próprio. Pior seria se escondesse o pensamento; ou se o afeiçoasse ao espírito dos tempos, acomodando-o aos cânones, ou a um cânone dominante, para aplacar a ira desembestada que subiu a cena com a democracia da opinião (ou a opinião democratizada) que é um farol deste tempo. Seria refém do meu próprio sobressalto se escondesse o pensamento, quando ele morde os calcanhares dos habilitados pelos cânones e os morde em pontos sensíveis. 

Contra as mordaças que conspiram contra a vontade sem donos, o pensamento em riste. Como se fosse lava propositadamente cuspida contra os contrafortes onde se refugiam os artífices da habitualidade e os seus seguidores acríticos. Dessa lava que não profana, uma lava profícua que deixa em forma de promessa o húmus onde medra um novo pensamento em riste. Um pensamento que se subleve contra o pensamento de que sou mecenas, de preferência.

Não me apoquentam as sindicâncias ao pensamento que se traduz em forma de letra. Não quero ser fautor de imperativos categóricos e de verdades que se impõem por usucapião das almas. Promover o conhecimento público de um pensamento é a melhor maneira de subir a um banco dos réus onde se manifesta uma justiça popular. Para quem não tenha estômago, ou não esteja habilitado a compreender a puída natureza humana, a exposição dos julgamentos às ideias patenteadas pode representar um estrénuo ataque pessoal. Não é o caso. São os autonomeados juízes públicos a reivindicarem o seu pessoal uso da democracia democratizada, atiçando a bílis contra o pensamento em riste.   


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