25.9.25

Uma modesta proposta para quebrar a espinha do pessimismo antropológico (autopoiese)

Björk, “Human Behaviour”, in https://www.youtube.com/watch?v=p0mRIhK9seg

“As nossas cabeças são redondas para que as nossas ideias possam mudar de direção”, Francis Picabia, citado por Pedro Norton, in Público, 24.09.25, p. 9.

Começo por um lugar-comum, mas que nem assim perde acuidade esta perplexidade que trespassa um observador atento ao mundo: a exacerbação de ideias; a retórica engrossada; o esvaziamento da moderação, substituída pela reação instantânea e febril; o menosprezo do adversário, depressa conduzido ao estatuto de inimigo; o inimigo assim entronizado deixado à mercê da artilharia pesada, metafórica ou nem tanto, constituindo-se como alvo a abater – numa palavra, o radicalismo que já não toma apenas conta da pele, embebendo-se no âmago das almas que habitam o espaço público. 

Sem receio de o dizer, este é um cenário que já é dantesco. Com a agravante de que são repetidos comportamentos passados na flagrante exibição do desconhecimento da História; e com a agravante, de sinal contrário, que, contudo, não deixa de alimentar os que pretendem combater, dos que inventariam a História para tecer analogias extemporâneas (porque, ao contrário de muitos que se servem da História para instrumentalizar ideias e debates, não encontro provas de que a História se repete).

Este não é um manifesto ou uma manifestação de pessimismo antropológico. Podia ser, porque o mundo coevo não é recomendável. Os radicalismos (o plural é significativo) são uma das medidas da depressão coletiva. De um lado, os procuradores desses radicalismos, inebriados pela certeza irrebatível das suas verdades, mesmo que sejam alicerçadas num rosário de mentiras, atiram os seus determinismos aos demais. Do outro lado, os contrarradicais que partem do combate àquele radicalismo e se emprestam à usura de um radicalismo de sinal contrário: para combater o radicalismo de que não gostam, extrapolam o que poderíamos ter se esses radicais tomassem conta do poder. 

Dialogar tornou-se impossível. As palavras deixaram de ser a medida legítima do debate de ideias. Em seu lugar, surgem a desqualificação do outro, a teimosia de sair vencedor de uma discussão, a maledicência e o ataque pessoal quando os argumentos começam a ficar rarefeitos, no limite, o ataque físico e as vidas que são abreviadas pela violência grotesca.

Apesar do pessimismo antropológico, a segunda parte deste texto convoca a boa moeda que ainda podemos encontrar, pese embora os tempos plúmbeos em que estamos imersos. O dissenso dos ares carregados dos tempos que correm mobiliza uma atitude diligente que invista no sentido oposto. Ocorre-me o pedagógico compromisso com a tolerância, por exemplo. A quem for dado o privilégio de ocupar um lugar onde a pedagogia junto dos outros é exercida, que a oportunidade seja agarrada para ensinar que é preciso saber respeitar as ideias diferentes das nossas, sem cuidar de saber se têm algum, escasso ou nenhum cabimento. Os debates são para fruir na troca de ideias com os outros, não para corresponder à corrupção contemporânea que instala nas pessoas a convicção de que têm, porque têm, de sair triunfantes do debate. Pelo contrário: participa-se em discussões com os outros para aprendermos alguma coisa com eles. Seja construtiva essa lição. Ou, pela negativa, para que nos situemos de forma fundamentada quando temos a lucidez de conhecer as divergências que nos separam.

Outro exemplo: as leituras. Reduzo o exemplo às leituras que tratam de ideias (filosóficas, políticas, económicas, sociológicas e de outras áreas do saber). Interessa continuar a ler os autores com os quais nos identificamos? A menos que a ciência seja reveladora de descobertas e que seja importante atualizar nossa bagagem de conhecimento na área, repetir autores nos quais gravitamos é começar a perder tempo (num tempo em que o tempo começa a escassear pela entrada no Outono etário). Ler os autores que estão longe das nossas ideias é que nos enriquece. As ideias que temos exigem o conhecimento daquelas que se lhes opõem. De outro modo, o conhecimento é parcial e amputado.

Quem me conhece ficaria admirado ao saber que ensino Introdução à Economia partindo de pressupostos, aplicando métodos e explorando temas que não quadram com as ideias que defendo. Faço-o em desafio aos cânones, por ajuizar que a Economia tradicional – ou a maneira tradicional de ensinar Economia – está divorciada das necessidades do mundo contemporâneo. Faço-o também como desafio pessoal.  Sem me ter desfiliado de um mínimo das ideias que defendo, tento conciliá-las com um modo alternativo de entender a ciência económica. Quem me conhece poderá estranhar que leia mais depressa Kate Raworth em vez de Samuelson, Boaventura em vez de Scrutton, Zizek em vez de Nietzsche, Dostoievski em vez de Manuel Vilas, Neruda em vez de Herberto, ou Couto Viana em vez de O’Neill. 

Talvez seja da madurez. A predisposição para saber o que os outros pensam, numa conversa com os que estão situados em latitudes diferentes das nossas, é um sinal de abertura de espírito e, se me é permitida a ousadia (ou, vá lá, a arrogância...), de inteligência. Com a melhor de todas as vantagens: se interiorizarmos este código de conduta, se entendermos que este é um método heurístico e, ao mesmo tempo, uma necessidade (e daí o seu utilitarismo – não fujo ao diagnóstico), distanciamo-nos do lugar puído em que se transformou o mundo que é nosso. À escala muito pequena do contributo individual de cada um, um nano-contributo, é certo, desvinculamo-nos desse espectro terrível que consome os dias presentes. Fica-nos reservada a consolação de não sermos fautores ou fautrizes destes tempos terríveis que nos assolam.

A cada um compete descobrir a janela que, depois de entreaberta, deixa entrar o ar cristalino que dissolve o ar puído que nos contamina.

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