30.9.25

Vigia

Sigur Rós, “Ylur”, in https://www.youtube.com/watch?v=bVUGKcT9QgQ

O arraial era longe. As pessoas pareciam bonecos de chumbo. A paisagem, como se tivesse sido montada por um estratega lúdico que, à falta de interesse pelas dores da realidade, se entretinha com cenários imaginados. À semelhança do generalato que elucubra longamente sobre hipóteses de guerra para não deixar adormecer o vírus da beligerância.

Longe estava o arraial, mas o alarido – mistura de cores, sons e luzes feéricas que, mesmo à distância, rompiam a quietude do olhar – fazia-se notar. Estava de vigia, longe quanto baste. Dizia, sem receio de rótulos menos simpáticos que compensassem a arrogância não fingida, que o problema dos arraiais é terem gente. 

(Ia a dizer “muita gente”, mas retificou a tempo.)

(O rótulo que talvez mais o apoquentasse era “fascista social”. Depressa caiu em si: é indiferente que lhe seja pespegado esse ou outro qualquer rótulo. As palavras, de onde vêm, não causam dor.)

A vigia era uma cura necessária. Não precisava de se exilar quando o calendário deixava o arraial à mostra. Já tinha demandado o exílio antes. Cansara-se da cidade, das pessoas sem concessões, da idolatria que as pessoas dedicavam, à vez, às estrelas sempre efémeras (sempre os próximos candidatos ao esquecimento), das agressões gramaticais, do estado geral de fingimento, das suposições arbitrárias, das especulações diletantes, das pessoas venais ao primeiro aceno materialista; cansara-se: da pequenez mental, da mesquinhez hasteada como se fosse uma bandeira carregada de orgulho.

Desde a vigia, longe do estado de sítio em que o sítio mergulhara, pusera-se a salvo. Ou não, na totalidade. Não foi tão longe ao ponto de o olhar não conseguir alcançar a cidade onde foi dado como nado. Rateou o mal da empreitada, deslocando-se para um lugar que era longe e perto ao mesmo tempo. 

(Aprendera que a distância é um produto da intensa subjetividade em que nos debatemos.) 

Era como se estivesse perenemente de atalaia. Sitiado por um feixe paradoxal de sentimentos: à distância higiénica do exílio, somou-se um instinto que não deixou encontrar cais num lugar que não mantivesse a cidade à mercê do olhar. Queria distância e vigiar a cidade, ao mesmo tempo. Não se desprendera das saudades da cidade, mesmo dela tendo partido para um exílio necessário.

Naquela noite, o sono foi colonizado pela insónia. Soubera que o arraial passaria a ter duas edições anuais. A outra, para coincidir com o Natal. Não há mal que sobre só – rematou, com visível desprazer pela notícia acabada de sair. 

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