10.9.25

Nietzsche fumava às escondidas

Radiohead, “I Might Be Wrong”, in https://www.youtube.com/watch?v=LOuLf8ThkoQ

De tudo o que sabia, a fulminante, voraz moratória das intenções destratava o lugar. Havia, como dizer?, desmodos, boçalidade escorrendo pelos poros a salivar em forma de palavras, como se tivessem sido expropriadas dos esgotos e estes tivessem, enfim, ficado vazios. Enfim, havia pessoas. Dizias: “mas se os esgotos ficarem vazios, a cidade tornou-se inabitada”. Talvez. Vejo que te desimportas das pessoas. São matérias para a palavra sempre sábia do senhor presidente da república.

De todo o modo, as incumbências acamavam umas em cima das outras, como acontece com a literatura de mesinha-da-cabeceira que vai sendo empilhada e empilhada porque o sono nunca é contumaz e, mal chegas à cama, o sono vence tudo. “Às vezes, notava o cheiro da maresia até em hotéis que distavam centenas de quilómetros do mar”, dizias, quase suplicando para acreditar nas fantasias que congeminavas. Eu encolhia os ombros, permanecendo estático. Era apenas um encolher de ombros pensado.

“Alguém se esqueceu do cachimbo ali na mesa do lado”, disseste, enquanto tocavas com o cotovelo no meu braço. Ainda tinha uma réstia de fumo, o aroma a caramelo a insinuar-se a meias com a maresia que, desta vez, era a sério (a esplanada era marginal ao mar). “Quem se esquece de um objeto tamanho?” (Estes cachimbos são quase obras de arte.) Lembraste-me que sou pródigo em deixar o paradeiro das coisas onde elas se encontram temporariamente (e depois de perdidas, sabe-se lá para quando): os guarda-chuva, um telemóvel, a chave do carro, canetas (várias), óculos de sol, um cartão multibanco – às vezes, o juízo. 

Tens razão. Mas nunca deixaria um cachimbo condenado à orfandade.

Pois não, tu não fumas, é o que te safa deste paradoxo.

Sempre gostei da palavra paradoxo. À medida que envelheci, fui ficando alérgico à coerência. Logo eu, tão intransigente com a dieta da coerência na juventude. Como me aborrecem os sacerdotes de uma-coisa-qualquer que erguem o dedo em riste quando alguém é apanhado a patinar numa incoerência. Deviam inventar inspetores especiais para estas pessoas. Só para as apanhar em contramão e expô-las para gáudio dos simples mortais que não dão conta que enfermam da doença geral da incoerência.

Disse: “sempre gostei de paradoxos”. As contradições internas que nos atiram em solavancos, de um lado para o outro do pensamento, à mercê das ondas que se sobrepõem às demais e nos levam, por instantes, a ser o que vemos desmentido logo a seguir. Não somos menores por termos a incoerência bem cultivada. Cuidamos dela, como se precisasse de ser apascentada.

Não me censures por ser tão amigo dos paradoxos. É o meu desporto favorito, depois de glosar Nietzsche.

Sem comentários: