22.9.25

Discos partidos

Nine Inch Nails, “Who Wants To Live Forever?”, in https://www.youtube.com/watch?v=ExIp--YRB9E

O poeta vagueava pela cidade, de preferência de café em café. Vagueava como se fosse um mercador à antiga, daqueles que oferecem os seus préstimos aos passeantes e às pessoas sentadas nas mesas e nas esplanadas dos cafés. O poeta oferecia pequenos poemas da sua lavra em opúsculos com o tamanho A6.

O poeta não queria saber se as pessoas ficavam com os pequenos poemas ou se os atiravam para o primeiro lixo à mão. Era seu dever não ficar à espera que uma editora o convidasse a publicar parte do seu espólio, como era seu dever não olhar para trás para saber do destino dos poemas oferecidos. Tinha como princípio não bater às portas das editoras, não tinha paciência para a falta de resposta ou para a resposta formatada que elogia muito os poemas – que até têm qualidade, mas o mercado não está para poesia de neófitos, a não ser que eles se autosubsidiem (e assim subsidiem os possíveis lucros das editoras). Se lhe perguntassem, o poeta diria que não aspira a ver os seus poemas publicados.

Por isso continuava a demanda quase diária, palmeando quilómetros pelas ruas das cidades, de café em café. Um dia conseguiu escutar, em surdina, o comentário desdenhoso de um executivo (vestia fato e gravata, impecavelmente apessoado): “este indivíduo vem sempre aqui oferecer uns papelinhos, nem sei bem o que isto é. Parece um disco partido, não sai do lugar e repete o que está a dizer”. Um disco partido! Uns papelinhos! O homem nem teve o cuidado de ver o que estava escrito nos papelinhos, podia ser o segredo para ganhar a lotaria, que o executivo não desdenharia toda essa abastança, isso é ainda mais certo.

A partir daí, o poeta itinerante escreveu uma mnemónica nas paredes da sala e do quarto: “discos partidos”. Não se ficou pelo singular, como propusera o executivo. Usou o plural: afinal de contas, a distribuição de poemas pelo vate não era um só momento, repetia-se quase todos os dias. Ele considerava que a cada dia que saía de casa para ser generoso à sua maneira, era uma vez a ser disco partido. Começou a chamar a si mesmo “discos partidos”. Chegou a pensar em adotá-lo como pseudónimo.

Um dia, alguém meteu conversa com ele, pese embora continuasse a deixar poemas à disposição dos clientes dos cafés sem cessar o passo, passando por eles a uma velocidade estonteante (ainda continuava a ser misantropo). Uma senhora sexagenária perguntou, entre duas inalações do fumo do tabaco, se os poemas eram repetidos e se conservava o original em casa. Timidamente, sem dirigir o olhar para a mulher, como se fosse um rapaz adolescente tomado pela insegurança da idade, balbuciou: “por que quer saber isso?” A mulher confessou que era por curiosidade ao tê-lo visto muitas vezes a distribuir poemas e, estendendo a mão, apresentou-se: “Lúcia, sou a Lúcia”. “E eu sou o Discos Partidos”. Depois da gargalhada sonora da mulher, acrescentou: 

Todos os dias o poema é diferente. Umas vezes feito de véspera, outras vezes aproveito o espólio e escolho um poema avulso. Não guardo o original. Tiro fotocópias e depois de oferecer todos os papelinhos perco o paradeiro desse poema. E, antes que pergunte, digo já: não lamento que o poema fique órfão de mim. Um executivo que em tempos me chamou, jocosamente, discos partidos, não imaginava como sou todo o seu contrário. Ele não se lembra de mim, apesar da sua figura ter ficado tatuada no mais fundo da minha consciência. Nunca mais quis conservar os poemas que ofereço.

A mulher, atónita com as palavras esbanjadoras do poeta que até então julgava ser mudo, sentenciou:

- Assim não consegue publicar a sua poesia.

Pois não. Mas não quero.

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