5.11.04

A vida é um rascunho?

Na vista de olhos diária pela imprensa, detenho-me nas colunas de opinião de alguns cronistas. Uns – poucos – pelo gosto que me dá a leitura da prosa, mesmo que esteja em desacordo na maior parte das vezes. Doutros discordo, e por isso os leio, por serem o fermento que me aguça uma visão alternativa do mundo. Às segundas-feiras, João César das Neves (JCN) é leitura obrigatória no Diário de Notícias, com a sua coluna intitulada “não há almoços grátis”.

Quando JCN escreve sobe economia, muitas vezes consigo concordar com ele. Sobretudo quando não descai para receitas que ressoam o Keynesianismo decadente, replicando a doutrina do seu mestre, Cavaco Silva. Outras vezes, JCN escreve sobre assuntos da alma e da fé. É nestas ocasiões, em que prega uma visão de beatífica ingenuidade, que não consigo aderir às suas ideias. Quando aparece com as vestes de pitonisa religiosa, sucedâneo dos clérigos emproados nas suas certeza dogmáticas que não deixam lugar a qualquer dúvida metafísica, chego ao final dos textos com a sensação de que JCN vive num mundo que apenas existe na sua cabeça. Ao ler esses textos impregnados de uma candura inexcedível, JCN retrata o mundo que ele diz existir mas que não passa de um universo que ele gostaria que existisse. Como dizem os ingleses, apenas um “wishful thinking”.

O derradeiro ensaio conhecido teve como título “rascunho da vida”. JCN surgia indignado porque alguém, bem mais idoso, disse “agora, que estou no fim da vida”. Interroga-se: “Como é que alguém pode contemplar directamente o fim de si próprio? Em síntese, JCN quer demonstrar que a vida é mais importante do que a morte. Até aí estou com ele, pois a morte é a negação da vida que levamos, efémera, até que essa esquina inexorável que é a morte não consegue ser dobrada. Mas JCN pega no assunto para ensaiar uma prédica carregada de optimismo católico. Um dos dogmas do catolicismo é a vida para além da morte. Estaremos na vida terrena de passagem, a cumprir uma tarefa temporária, para depois entregarmos a alma à vida eterna que vem com a despedida da vida terrena.

Não devemos encarar a morte com a angústia de quem não sabe qual o destino reservado para depois, avisa JCN. Porque, apesar de convivermos com o lugar comum de que a morte é a única coisa certa que temos na vida, conclui que “esta frase, tão usada, é completamente falsa. A única certeza da vida é a vida. Desde que nascemos que a nossa existência nos aparece com toda a evidência inelutável da certeza. Falam-nos da morte, vemos a morte, mas o que sentimos, a única coisa que sentimos com segurança, é a vida.

Fiquei na dúvida se JCN tinha inflectido as suas posições tão típicas de um catolicismo arreigado. Seria uma exibição de um acto de sagração da vida, da vida terrena que não é tão valorizada como a vida eterna pregada pelos dogmas da religião católica? Não demorei muito tempo a tirar a limpo as minhas dúvidas. Aproximando-se do final da crónica, JCN toca no ponto sensível: “só há uma maneira de conciliar tudo o que sabemos sobre a vida. A única forma de entender o que somos é que esta vida seja um rascunho, um esboço preparatório, um ensaio. No final, (o rascunho) será abandonado, quando a obra definitiva for passada a limpo. Não faz sentido que a vida, o dom mais precioso do mundo, tenha fim. Mas, sendo tão precioso, é lógico que tenha ensaio. Cada dia, com alegria, estou mais perto do fim do rascunho da minha vida.

Ou seja: andamos, na vida que conhecemos, naquela de que temos provas inelutáveis, apenas a preparar o terreno para a existência eterna que nos é trazida com a chegada da morte. Não posso deixar de ficar preso à etimologia da palavra: olhar para a vida como um rascunho é como aceitar que a “obra final”, a edificação da nossa essência, será visível quando nos despedimos da vida terrena. Não será uma perda de tempo, mas esta vida é uma sucessão de experiências, uma estrada sinuosa com acidentes que alteram o percurso, uma inclinada ladeira em que vamos ultrapassando – umas vezes bem, muitas vezes mal – os obstáculos que surgem pela frente. Sabendo que só depois, quando a morte tira a vida para trazer outra forma de existência (a que é ininteligível), cumprimos o nosso destino.

É uma questão de fé. Como questão metafísica que é, as convicções são difíceis de discutir. Não me interessa saber se JCN tem razão. Ele terá a razão que a sua consciência, que a sua fé, lhe dita. Para quem anda arredio das andanças da fé, há que convir que este discurso deixa mais dúvidas do que certezas. Para um agnóstico preso à ditadura do racionalismo, é impossível embarcar nesta “história da carochinha” contada por JCN. Para quem olha para a morte com a terrível angústia de que é o ponto final, de que depois vem um vazio que corresponde à extinção da existência, não é reconfortante ler estas palavras impregnadas de fé. Nem tão pouco acredito que estas pessoas, no instante final da vida, quando se esvaem os últimos suspiros que levam ao encerramento dos olhos para todo o sempre, que adormeçam com o sossego de que estão a partir para outra dimensão.

5 comentários:

Anónimo disse...

Viver só com base na razão é complicado. A vida perde cor.
Se pensares um pouco, tudo na vida que te deu verdadeiro gozo teve um componente emocional forte (ter um filho, ver um rali, ouvir uma música, etc...).
Neste contexto, acho que o César das Neves é mais feliz do que tu. Lá encontrou uma forma de encaixar essa angustia do fim. A minha, não sendo igual, anda lá próxima.
Às vezes é bom acreditar em algo sem provas. Só acreditar.
E se não for verdade?
Ele viveu feliz, tu não.

Um abraço,
Ponte Vasco da Gama

PVM disse...

Ponte Vasco da Gama:

Laboras num equívoco: que a angústia da morte seja a causa deuma vida repleta de infelicidade. Angústia não é sinónimo necessário de infelicidade!
Tenho pavor da morte. E quando penso nisto motiva-me mais viver a vida com todas as energias que encontro dentro de mim. Não como um "rascunho", mas como algo de completo,que apenas se completa enquanto eu estiver vivo. Porque, depois disso, ninguém conseguiu demonstrar nada. Lá está: a deriva racionalista a vir ao de cima...

Paulo

Anónimo disse...

Eu não acho que a angústia da morte seja a causa de uma vida repleta de infelicidade.
Aliás, a minha morte é a que me preocupa menos. Os que cá ficam é que têm de lidar com ela. Preocupa-me perceber que sentido faz a morte de uma criança, ou dos milhões de inocentes em guerras, por exemplo. Aceitar que acontecem simplesmente causa-me angustia. Se as enquadrar em algo mais abrangente fico, talvez de forma ilusória, mais reconfortado. Mas vivo melhor com o mundo que me rodeia. É prático. E, desta forma, fico mais disponível para viver o que tenho pela frente mais intensamente.
Acho que tu és daqueles que se um dia tiver fé, serás fanático. Até lá, navegas nessa inteligente, mas pouco prática, racionalidade.

Ponte Vasco da Gama

PVM disse...

A racionalidade talvez não seja inteligente: muitas vezes é a forma mais célere de punição interior, da qual não se consegue fugir. As fés e outras crenças cicatrizam as feridas abertas. A racionalidade impede que elas sejam cauterizadas.
A racionalidade não é um pretexto para escapar das coisas. Não procura encontrar respostas místicas que são apenas uma tentativa de dar resposta a coisas que não podem ser explicadas.
Só não percebi uma coisa: porque seria eu fanático se tivesse fé?

Paulo

Anónimo disse...

Respondendo a esta tua última pergunta:
Porque defendes com unhas e dentes todas as coisas em que acreditas. Mesmo que seja o facto de "não acreditares". Porque tens uma forte necessidade de te sentires coerente. Porque no fundo andas à procura dessa fé que te foge.

Um abraço,
Ponte Vasco da Gama