24.11.04

Apologia do consumo

Estranha esta necessidade de fugir aos cânones do “politicamente correcto”. Esquivar-me da banalidade da boa consciência social que tenta impor os comportamentos aceitáveis. Ao mínimo deslize, os olhares de desconfiança tombam sobre quem se desalinha dos padrões convencionais. São os proscritos da sociedade bem pensante, as ovelhas ranhosas de um rebanho ordenado e bem comportado.

Entre os ditames que nos são impostos, a ideia de que vivemos numa sociedade que se deslumbra pela tentação diabólica do consumismo. A culpa, claro, é do capitalismo, e da sua muleta de oportunidade, a publicidade. Recentemente a censura social tem recaído sobre um novo culpado, o sistema bancário. São os bancos, com as aliciantes “ofertas” de crédito, que empurram as pessoas para mais e desnecessário consumo. Com a desvantagem adicional de as colocar com uma corda à garganta no que diz respeito ao endividamento.

Este é o diagnóstico que convém aos anjos que pairam sobre nós, comuns mortais. Eles não se cansam de chamar a atenção para os malefícios do consumo exagerado. Uns, vindos da economia, têm um comportamento mais neutral. Alertam que o consumo exagerado de hoje desvia recursos à poupança. Logo, é o investimento de amanhã que fica prejudicado, tal como a possibilidade de sermos um país mais desenvolvido. Dirão que enfermamos de um erro de perspectiva temporal: não conseguimos alcançar para além do curto prazo, deixamo-nos inebriar pelos gostos que se consomem num instante. Deixámos de ter tempo (ou apenas visão) para olhar para o nosso futuro, porque o diabo tentador do consumo está sempre ao dobrar da esquina, preparado para nos desviar da poupança.

Outros, mais folclóricos, as aves agoirentas que não perdem uma oportunidade para vituperar o sistema capitalista, põem-se em bicos de pés para assestar as baterias contra os desmandos do consumo exagerado. Pintam um quadro negro. Insinuam que somos levados no engodo de uma tenebrosa coligação: empresas de bens e serviços, empresas de publicidade que vendem estes bens e serviços, e sistema bancário que dá o crédito que alimenta o consumo. Coligação que nos empurra para consumir produtos e serviços que são meros adereços de uma fobia consumista desvairada.

Esta diabólica coligação traz a exaustão dos recursos dos particulares. Sobretudo quando é necessário aliciar os consumidores com o chamariz do crédito, esse mal-afortunado instrumento que empenha as pessoas até ao tutano para apenas satisfazerem tipos de consumo que, na maior parte das vezes, são supérfluos. A rematar o diagnóstico da doença, um arremedo de moralidade bolorenta: as pessoas deviam aceitar a contenção em vez da prodigalidade. Uma versão hodierna dos votos religiosos que traziam aos clérigos as mais diversas abstinências. Esta seria uma abstinência consumista, na benevolência de um ascetismo militante.

O discurso é apelativo. É fácil apontar as armas contra o capitalismo, contra as empresas que só conseguem produzir mais se aliciarem os consumidores, a publicidade que instrumentaliza, os bancos que seduzem as pessoas a recorrerem a mais crédito. Mais difícil é perceber que as pessoas têm livre arbítrio. Devia imperar o bom senso de reconhecer a responsabilidade individual. Com todas as consequências que daí advêm, em especial as consequências para quem se endivida até ao pescoço para saciar os excessos consumistas para que resvalou em tempos.

Inquieta-me esta moralidade intrusiva que desdenha da responsabilidade individual. Parece que somos uma horda de irresponsáveis que carece de uma tutela paternal, aqui assumida pelos sacerdotes desta nova ética anti-consumista. No fundo, desconfia-se da responsabilidade individual. O que implica uma invasão na esfera de cada pessoa. Enquanto persistir esta tendência para colocar uma mão visível e generosa sobre a cabeça de cada pessoa, dando a entender que no limite alguém há-de acorrer em seu auxílio (estas corporações que não hesitam em acusar as empresas, a publicidade e os bancos como os culpados pelos excessos de consumismo e pelo endividamento insuportável), a responsabilização individual está bem longe de cada um de nós.

Estes anjos que velam pelo nosso bem-estar esquecem-se de um aspecto decisivo: mesmo que digam que andamos iludidos pelos benefícios de um consumismo espúrio, esses são benefícios que cada pessoa sente na sua esfera. É o bem-estar de cada pessoa que é posto em causa quando os mentores da boa consciência social se insurgem contra o consumo exagerado. Tanto basta para serem denunciados.

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