19.11.04

Olha para o que eu digo, não para o que eu faço: Terrakota e o multiculturalismo

O segundo dia do congresso que está a decorrer na universidade (colóquio internacional sobre África e Ásia “patrimónios partilhados”) encerrou com uma interessante iniciativa. Num exercício pouco convencional (e por isso louvável), a organização convidou alguns elementos de um projecto musical, os Terrakota. O projecto inspira-se na pureza dos sons tradicionais africanos para emprestar aos seus trabalhos uma originalidade que se afasta dos padrões da música pop dominante.

Os três músicos foram convidados a apresentar o projecto – a génese, as fontes onde beberam inspiração, os trabalhos já publicados, pormenores sobre os instrumentos tradicionais que obrigam a tempo de aturada aprendizagem. O discurso foi aqui e ali pontuado por preconceitos de gema: que o mundo obedece a uma formatação que não augura um futuro risonho, que os nossos ouvidos estão enxameados pela música plástica que domina a antena, que perdemos o fio à meada às origens genuínas dos sons, à sua matriz antropológica. A música que fazem é um refúgio da plasticidade que domina o mundo de hoje.

Percebi insatisfação em relação aos meios musicais convencionais. Das palavras dos músicos, sentia-se a necessidade de afirmação de uma estética alternativa que encontra as suas raízes na África profunda, nos meios rurais onde campeiam as sociedades tribais. Uma espécie de fuga às relações sociais artificiais que se constroem nos meios citadinos, mais ainda em países impregnados da ocidentalidade dominante que nos empurra para o mito do pensamento único, dos comportamentos padronizados. Uma estética de ruptura, dir-se-ia. Um apelo aos sons vindos da terra, moldados por instrumentos que são os altares sagrados do artesanato, a negação da sofisticação e da tecnologia.

As palavras que discorreram não tinham sido preparadas – nem se esperava que o fossem, ou a genuinidade da iniciativa esbarrava no paradoxo dos elementos plásticos que não combinam com a natureza do projecto. É compreensível que os pensamentos alinhavados tenham sido notas esparsas, sem linha de continuidade. Apesar de algumas confusões (a explicação mal conseguida da origem do nome do projecto), a mensagem passou com fluidez. Percebeu-se a raiz alternativa do projecto, na esteira do multiculturalismo tão em moda. O projecto tece pontes entre continentes tão diferentes e no fundo tão ligados por uma história comum. É uma porta de entrada das sonoridades tradicionais africanas no mercado europeu, uma janela entreaberta que nos convida a olhar para o outro lado, para o outro (o africano) que tem tanta riqueza para nos legar.

Depois das palavras, a música. Com os músicos viajaram alguns instrumentos tradicionais africanos. Não foi possível registar na memória os seus nomes, porque usam palavras de dialectos locais. Após uma interessante descrição da forma como eram construídos, e por quem eram tradicionalmente utilizados, os três músicos ensaiaram dois momentos de improvisação para mostrar a sonoridade dos instrumentos. Como se fosse uma jam session, tivemos direito a duas peças em que os sons crus e melódicos dos instrumentos ecoaram pelo auditório.

A encerrar a sessão, apresentaram uma amostra da música incluída nos dois álbuns já publicados. Primeiro num registo sonoro, depois num videoclip, dois temas que fizeram desabar a aura de encantamento que ainda pudesse existir para aqueles que prestam tributo ao multiculturalismo na sua acepção genuína. Depois de os termos ouvido dissertar sobre a busca incessante das raízes tradicionais africanas, de termos escutado como verberam a plasticidade da música pop que por aí vagueia, dois temas musicais que mostram as inspirações africanas mascaradas por uma roupagem pop. A decepção veio com o final da performance, juntamente com o aviso de que estava à venda, à saída do auditório, o seu espólio musical (o que não combina com a imagem de desprendimento anti-comercial que os músicos quiseram passar).

A desilusão veio do contraste entre o ensaio improvisado e as peças trabalhadas, com produção cuidada, que não ficam a dever aos métodos sofisticados (que eles disseram desprezar) utilizados na música ocidental. Sem surpresa: revelaram que o último trabalho foi gravado e produzido em Dakar, Senegal, nos estúdios de Youssou N’Dour – essa figura que se quer passar por expoente da world music, mas que não ultrapassa a mediania da sonoridade ocidental mesclada com alguns sons tradicionais africanos. Ao ouvir aquelas duas músicas do projecto (desconheço o resto), lembrei-me como um músico como David Byrne é mais genuíno com os seus trabalhos de miscigenação de diversas influências sonoras.

Ao sair do auditório, senti que tinha sido enganado. Depois do discurso, das digressões pelos lugares comuns de uma multiculturalidade que rejeita os “malefícios” da sociedade padronizada em que vivemos; depois do belo momento de improvisação musical com os instrumentos tradicionais; estava à espera que o som trabalhado em disco desse continuidade às mesmas tendências. Afinal, o discurso não era a representação da sonoridade construída, também ela tão plástica como a plasticidade criticada pelos músicos.

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