15.11.04

Outra vez a intolerância da democracia

Um tribunal belga decidiu ilegalizar o Vlaams Blok, um partido de extrema-direita. Motivos: os discursos anti-imigração do partido, contrário à presença de estrangeiros no território belga. Como se não fossem suficientes as dúvidas acerca da legitimidade política desta sentença, ela é ineficaz: os mentores do partido ilegalizado podem manter todas as suas estruturas, apenas sendo obrigados a alterar o nome. Um obstáculo menor que não impede a continuidade do partido.

Um aspecto que importa reter é a falta de oportunidade da sentença. Não se trata de um grupelho de fanáticos que exibem toda a sua cólera radical (e mesmo que fosse, não vejo como pode a democracia ungir-se de legitimidade para o ilegalizar). O Vlaams Blok representa quase 25% do eleitorado belga. Potencialmente, um em cada quatro eleitores ter-se-á sentido ofendido pela decisão iluminada de um grupo de juízes. Se não fosse possível reconstituir o partido, esta sentença teria um efeito devastador. Tornaria aqueles 25% dos eleitores politicamente órfãos. Dir-se-ia que estes juízes, aureolados com uma consciência moral acima dos mortais, empurravam aquela franja do eleitorado para partidos “politicamente correctos”. Um frete da justiça à democracia, como se fosse esta a função de quem julga – e como se a separação entre justiça e poder político não fosse um alicerce do “moderno Estado de direito”.

Quando a democracia tenta afugentar partidos anti-democráticos com o beneplácito da magistratura, fico com as suspeitas ao alto. Não é verdade que uma das grandes virtudes da democracia contemporânea é o apelo aos valores da tolerância, à inclusão dos que são diferentes? Como conciliar esta retórica com uma prática que não hesita em espezinhar o direito à existência daqueles que são contra a democracia?

Pode-se argumentar que os democratas são impelidos por um instinto de auto-defesa. Sabem que os partidos extremistas (apenas os da extrema-direita, porque os da extrema-esquerda são benquistos) querem liquidar o regime democrático. A única hipótese de evitar o fim da democracia é tirar o tapete aos movimentos confessadamente anti-democráticos. Compreendo a lógica do argumento, mas não descubro grande diferença na latitude de intolerância quando comparado com os partidos de extrema-direita. Esta solução utiliza as mesmas regras de intolerância dos adversários.

Também sou capaz de conceber mais um argumento a favor da liquidação dos anti-democratas: as suas ideias são perigosas, atentam contra valores estabelecidos, contra os esteios das liberdades individuais. Esta é uma razão poderosa. As ideias dos partidos de extrema-direita são um cutelo que paira, ameaçador, sobre os valores devolvidos após as atrocidades da segunda guerra mundial (e, no caso doméstico, após a longe noite do Estado Novo). Aceito que muitas consciências se mostrem incomodadas com a recrudescência destes partidos extremistas, que parecem ignorar as lições tenebrosas do passado recente – ou que apenas interpretam a história à sua maneira, duvidosa, mas à sua maneira. Também me assustam essas ideias, mais os métodos que resvalam para a violência. Nada disso é suficiente para que a democracia tenha legitimidade para asfixiar esses movimentos. A menos que a democracia não confie no eleitorado, que o veja como um conjunto de pessoas onde ainda pontificam franjas intelectualmente desqualificadas ao ponto de apoiarem as causas da extrema-direita.

A abertura de espírito que dos livros aprendi ser a maior virtude da democracia surge ofuscada. Os que se situam fora da normalidade democrática não podem existir, não se podem submeter a votos (por cá os partidos fascistas são proibidos pela Constituição). Teme-se que o eleitorado seja atraído pelas ideias do passado. Melhor confissão de que os eleitores só são inteligentes às vezes não podia ser dada à estampa. Não há maior desrespeito pela vontade popular. Se mais e mais gente se sente atraída pela extrema-direita, será legítimo cercear as preferências dessas pessoas através da ilegalização do partido em que votaram?

A democracia, nas suas tentações totalitaristas! Uma democracia que apenas aceita partidos que respeitem os cânones da normalidade democrática é uma democracia amputada. É uma democracia inspirada na mesma intolerância dos que quer combater. Não é assim que deles se consegue distinguir. Apenas se confunde nos métodos.

Quando se pensava que a Europa da intolerância tinha fechado um ciclo com o que se passou na Áustria (quando os neo-nazis chegaram à coligação governamental, e quando os patéticos Guterres da Europa perderam o sono com a cenário dantesco da reimplantação do tenebroso nacional-socialismo por contágio vindo daquele país), novas excrescências vêm à superfície. Como se não bastasse a duvidosa legitimidade política da solução, alguém duvida que ela é destituída de inteligência? Ou será difícil adivinhar que esta sentença vai cerrar as fileiras dos partidários do Vlaams Blok, radicalizar o espaço político e, porventura, chamar novos apoiantes a este partido?

A justiça, na ânsia do frete à democracia, no limiar do precipício de disparar um tiro no próprio pé…

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