Há dias escrevi sobre os malefícios do consumismo profetizados pelos novos guardiães da consciência de todos nós. Dizia então que a publicidade é um dos alicerces do consumo desregrado. A publicidade serve-se, cada vez mais, de mensagens sublimes para captar as preferências dos compradores. Uma imagem estudada com detalhe, a mensagem elaborada, frases certeiras disparadas para atingir em cheio o público-alvo. Os publicitários são dos profissionais mais bem pagos nos dias que correm. O que diz muito da utilidade da publicidade para a estratégia das empresas.
Hoje passei por uma padaria conceituada, mas tradicional, e pude observar que os requintes da publicidade já chegaram a este apeadeiro da tradição. Numa das montras, garrafas e mais garrafas de água do Luso, empilhadas em prateleiras divididas em três estratos. Parado no semáforo, à espera do sinal verde, pude apreciar o belo efeito que aquelas garrafas de tamanho diferente emprestavam à montra. Um efeito singelo, é certo, mas a beleza das águas cristalinas que abrilhantavam a montra com simplicidade.
Os especialistas de marketing sabem que uma montra elaborada com cuidado e requinte é um engodo para os consumidores. As marcas digladiam-se para colocar os produtos nos escaparates de lojas de renome, sabendo que é a melhor forma de os publicitar, meio caminho andado para um sucesso de vendas. Até existem cursos profissionais para “manipuladores de montras”, em que (imagino) são ensinados os segredos, as pequenas coisas que separam uma montra apelativa de uma montra que afugenta a clientela. Ao reparar que vivemos afogueados pela complexidade desta “arte”, ver a montra da padaria repleta de garrafas de água do Luso teve um efeito tonificante – como se fosse um contra-golpe, a negação dos hábitos que se vão consolidando.
Quando o requinte cresce a olhos vistos, dando razão aos que pensam que “os olhos também comem”, aquela padaria era a antítese. Pelo menos é nesta ingenuidade que quero estar ancorado, acreditando que não houve dedo dos especialistas em “manipulação de montras”. Quem sabe se este exemplo não pode servir de estudo de caso para os especialistas de marketing, um esboço de simplicidade que se furta às teias arrevesadas da sofisticação e do requinte? Quem sabe se esta montra não será um ponto de viragem, a consagração da simplicidade, o reconhecimento de que o mais difícil de alcançar é a simplicidade?
Que fique bem entendido: nada disto contradiz a apologia do consumo de há dias. Podemos continuar a ser empurrados para a voragem consumista sem que daí venham grandes danos, desde que a liberdade individual continue a ser respeitada e que os apóstolos do “fascismo de costumes” não sejam escutados. Mas quem sabe se este singelo exemplo de uma montra garrafas de água apinhadas numa ordenação surpreendente não desbrava um caminho alternativo: um caminho que apela ao regresso à simplicidade das coisas, que desdenha da artificialidade que se impregna na sofisticação de produtos que exaltam a imagem e obrigam as pessoas a gastar rios de dinheiro apenas para ostentar um símbolo de uma marca de renome.
Quando o semáforo esverdeou, meti a primeira e arranquei. Subitamente, da memória desprendeu-se um episódio que teve contacto com aquela padaria, já lá vão mais de dez anos. Depois de uma noite frenética com os amigos, de bar em bar, com os níveis etílicos para além do permitido a quem se senta ao volante, acabámos a tomar ali o pequeno-almoço, já a luminosidade do dia tinha espaventado o escuro da noite. Comprovei então que era hábito da tribo que ululava na noite convergir naquela padaria para afagar o estômago depois da mistura explosiva de álcool e do fumo que enxameia os bares e discotecas.
Desconheço se, passado este tempo, o ritual ainda se mantém. Caso ainda aconteça a noite acabar naquela padaria, percebo agora a mensagem subliminar da montra: imagino os donos da padaria, cansados do triste espectáculo de criaturas cambaleantes consumidas pela agressividade etílica. Imagino-os com uma condescendência paternalista a olhar para estas criaturas exangues de forças que ali vêm desaguar. Concluindo que do que elas precisam é de água para sarar as feridas abertas por mais uma noite de copos. Por isso as garrafas de água do Luso amontoadas na montra. Que é como quem diz, dirigindo-se a alguém que não consegue traçar uma linha recta tão atarantando está pela bebedeira, “bebe água que isso passa-te”!
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