3.11.04

Taxista com cara não escanhoada pode dar multa

O mau hábito de ficar a par do que se passa no mundo à hora das refeições traz surpresas. Na maior parte das vezes são desagradáveis, a atestar pela inclinação da comunicação social para divulgar as coisas más que acontecem no mundo. Desta vez fiquei atónito com uma notícia digna do Jornal do Incrível: em S. Pedro do Sul, um taxista foi multado por um zeloso elemento da GNR por não ter a barba feita. Inconformado com a decisão disparatada, o taxista reagiu contra a prepotência policial e apresentou recurso em tribunal. Que lhe deu razão.

Quando sou confrontado com acontecimentos bizarros como este, pergunto o que mais estará para vir. Parece que a imaginação humana quer fazer a vontade aos que apregoam a sua infindável fertilidade. Quem poderia pensar que existe uma qualquer norma que exige aos taxistas barba feita? Alguém poderia imaginar que o legislador português se deu ao trabalho de produzir legislação a regulamentar este aspecto comezinho?

De acordo com a notícia, o tribunal deu razão ao taxista porque a lei invocada pelo agente da GNR apenas se aplica aos quadros do exército e de forças policiais. O episódio traduz uma de duas coisas: ou o agente se equivocou no alcance da norma, acreditando que ela se aplica a todos os profissionais no exercício das suas funções, tal como se aplica a ele e aos seus colegas; ou trata-se de um caso de manifesto abuso de poder, a concretização de uma maleita nacional que leva a exageros – o que eu chamo o “complexo de farda”, que empossa de poder, ainda que momentaneamente, pessoas que nunca se viram dotadas dessa prerrogativa. Como o poder é efémero, há que extrair todo o poder até ao tutano, nem que para isso se descambe para abusos de poder.

Há quem diga que os abusos de poder são uma sequela do regime repressivo que findou em 1974. Teoriza-se que os agentes da autoridade e as forças militares ainda não se desprenderam dos tiques autoritários que eram uma muleta necessária do regime ditatorial. Não subscrevo a análise. Creio que se trata de algo congénito, de um elemento incrustado na substância do português típico. Como não gostamos de ser espezinhados por quem exerce qualquer forma de poder, quando é chegado o momento do poder cair nas nossas mãos deslumbramo-nos. Aproveitamos ao máximo o tempo escasso em que o poder está retido nas nossas mãos para o exibirmos de forma ostensiva. Daí até às situações de abuso de poder vai um pequeno passo.

Lembro-me de um episódio que se passou comigo, há cerca de dez anos, em que quase fui vítima de um abuso de poder de um polícia de segurança pública. Estava parado num semáforo, à espera do sinal verde. Quando arranquei, do outro lado um polícia atravessava a rua. Acelerei de propósito, porque o sinal estava vermelho para ele e verde para mim. Ele reparou, terá considerado um desrespeito e sacou do apito dando ordem de paragem. Esbaforido, exaltado, acercou-se de mim e com modos ríspidos exigiu os documentos. Perguntei-lhe porquê, pois não era obrigado a mostrar os documentos sem que ele me desse uma razão. Disparou a pergunta:

- Não sabe que quando um peão começa a atravessar uma rua tem sempre prioridade?

- Ó senhor guarda, ripostei, mesmo quando está sinal vermelho para os peões?

- Claro, não se lembra das regras do código da estrada? Vá lá, quero ver os seus documentos para o autuar.

Com tranquilidade, deixei-o tirar as notas que queria. Preparava-me para me despedir dele, para lhe dizer que teria todo o gosto em o encontrar em tribunal. Preparava-me para o desafiar a provar em tribunal que estava certo, estava à espera de lhe dizer que não acreditava que nenhum juiz tivesse a mesma interpretação imbecil que ele estava a dar ao código da estrada. Foi aí que ele me perguntou a profissão. Servi-me dos anos perdidos a estudar direito, do tempo que me sacrifiquei a fazer o estágio de advocacia, para logo de seguida decidir que não era esta a profissão que me faria feliz. Respondi: “advogado”.

A prepotência caiu-lhe queixo abaixo, como se alguém tivesse tirado o chão debaixo dos seus pés. Amansou a voz, despedindo-se de mim:

- Vá lá, desta vez passa, mas tenha cuidado!

Nem me dei ao trabalho de levar o caso mais longe. Vi nesta frase de despedida a confissão de alguém que tinha começado mal o dia e precisava de se servir da sua farda, abusando do poder que o cidadão normal não tem, para sacrificar um qualquer incauto que se atravessasse no seu caminho. Esta frase, em jeito de despedida, era a confissão implícita de quem tinha errado e estava admitir o abuso de poder que tinha tentado cometer. Por uma vez na vida, os anos passados a estudar direito e o estágio de advocacia tinham revelado utilidade. Foram o capital de respeito que estava a ser espezinhado por aquele polícia mal disposto. Outra fosse a formação, e talvez tivesse que me reencontrar com o polícia em tribunal. Nem imagino que prova distorcida iria forjar para se safar da situação problemática em que se estava a meter.

É por isso que não confio na polícia. Ao ver o que se passou em S. Pedro do Sul, é fácil perceber que há muitos agentes de autoridade que não têm a imparcialidade necessária para exercerem as suas funções. É fácil resvalarem para o abuso de poder, colocando a função policial longe das garantias de segurança que são exigíveis.

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