(Este texto foi escrito antes de saber da morte de Arafat)
Tantas vezes o homem já foi dado como morto, e outras tantas ressuscitou do seu leito parisiense de morte, que parece ter atingido a condição sobre-humana dos predestinados. Coincide com a imagem que lhe construíram. Arafat tem atrás de si um rol de actos de impressionante bravura, à mistura com uma sorte que protege os audazes e anda arredia do comum dos mortais. A sua biografia confunde-se com uma hagiografia. Sobretudo para os seus apaniguados, para os que partilham da sua causa, dentro e fora de portas, Arafat foi a bandeira dos sacrifícios impostos aos palestinos em busca de uma terra-mãe negada pelas vicissitudes da ordem internacional.
Agora que está em agonia numa cama de hospital em Paris, Arafat concentra as atenções do mundo. Perdi a conta às notícias que davam conta do seu óbito, logo seguidas de desmentidos frisando que o “grande líder” ainda resiste. É a imagem de resistente, ainda e sempre de braço dado com Arafat, que o acompanha até aos instantes finais da vida. Uma imagem conveniente para alimentar as hostes que se revêem na sua causa. Uma imagem de uma pessoa que até na morte concita as atenções do mundo, aqui como tantas vezes pelas razões erradas.
O episódio da doença mortal de Arafat veicula a imagem de Arafat como mártir. Mais um mártir a enriquecer o relicário da humanidade. Feito de tantos mártires que pagaram com o preço da vida, e quantas vezes com a penosidade do sacrifício da dor que antecipava os momentos finais da vida, a intransigente e dedicada defesa de ideais. É destes heróis que a humanidade se tem alimentado ao longo dos tempos. A historiografia do ser humano é um rol infindável de mártires que deram corpo e alma, a posteriori, às bandeiras que hastearam em seu nome.
Esta tendência para construir mártires está presente ao longo da história e é transversal a confissões e ideologias, por mais antagónicas que sejam. Os romanos apedrejaram os cristãos, e daí surgiram vários santos. Durante as cruzadas cristãs, os que perdiam a vida em combate e se distinguiam pela bravura na difusão dos ideais religiosos tinham a comenda post mortem por decisão papal. Mais tarde a religião passou a estar enfiada nas vestes do carrasco, dando origem a outros mártires que tentavam libertar-se (e à sociedade em que vivam) do espartilho dos cânones da religião dominante. Os desmandos da inquisição, as guerras em nome de um deus maior, as perseguições acobertadas na intolerância religiosa – razões para inverter os planos, fazendo das vítimas da intolerância os novos mártires que mereceram consagração tardia.
Até certos sectores, heterodoxos no tratamento que dão à História, sectores que se tentam emancipar dos padrões de comportamento “normais”, não conseguem evitar a tentação de fabricar os seus mártires. Podem não ser santificados ou beatificados. Mas são, à mesma, sujeitos de culto, verdadeiros heróis que alicerçam as fidelidades dos apoiantes. Arafat inclui-se nesta categoria. É delicioso ver comunistas e outros apoiantes oportunistas da causa palestina a verter lágrimas de comiseração pelo inditoso destino do líder que vai lançando os últimos suspiros. Eles, como os que fabricaram santos no passado, irmanados na mesma forma de agir: um sujeito exterior, a âncora onde se prendem os esteios das ideologias que, por deferência, oportunismo ou genuína adesão, bebem a sua inspiração nos heróis que arregimentam as fidelidades caninas.
Faz-me espécie o oportunismo de quem santifica estes mártires fabricados a posteriori. Primeiro, pelo aproveitamento dos sacrifícios que trouxeram às pessoas alvo das elegias um final de vida insuportável. Será a compensação pelas agruras que os conduziram à morte num altar de martírio? Segundo, porque o cimento dos grupos que partilham as mesmas causas (independentemente da sua natureza) vive de uma heroicidade que se inspira nos males infligidos a outrem. Esse cimento vem de fora, de alguém que já não está entre os vivos, de alguém que por ter acabado a vida em sofrimento impensável congrega as vontades que confluem num mesmo sentido.
Se Arafat já estava, pelos parâmetros das biografias oficiais, num estatuto acima do comum dos mortais, imagine-se o que vai acontecer depois de passadas as lamentáveis cenas que envolvem a recta final da sua vida. Se fosse judeu, e israelita, não conseguia estar confortável com o que se adivinha para além da linha do horizonte…
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