17.11.04

A barbárie do ocidente

O cenário é de devastação. Horas após combates que deixaram um rasto de morte, o silêncio sobrepôs-se ao troar das armas. É a hora do rescaldo. Tempo para ver a orgia de destruição, contar os cadáveres que jazem perfurados pelas balas, numa contabilidade macabra que enaltece a superioridade sobre o inimigo. As tropas pisam o terreno com cuidado, para não serem surpreendidas por emboscadas de guerrilheiros que se escondem acobertados pelo silêncio.

Uma destas brigadas é acompanhada por um repórter de imagem da CBS. Entram numa mesquita onde estavam acantonados os rebeldes. Cadáveres e mais cadáveres, despojos humanos sacrificados em nome de ideais que outros, refastelados no conforto de gabinetes, inspiram. A câmara abeira-se de dois homens que estão inertes, encostados a uma parede crivada de balas e salpicada de sangue. Ao fundo da imagem ouve-se um militar dos Estados Unidos: “o cabrão não está morto. Está a fingir!” e dispara, à queima-roupa, a sangue frio, sobre um rebelde ferido e desarmado.

Náusea, é a reacção que me percorreu pelo interior. Por ver que a imagem oficial da civilização árabe que nos vendem – o desapego pela vida, pela própria vida e mais ainda pela vida dos outros – está bem impregnada na doutrinação do exército de um país convencido de estar num patamar de superioridade civilizacional. Dirão os mais incrédulos que não podemos misturar a árvore com a floresta, que se trata de um caso isolado, que em todos os ajuntamentos humanos há comportamentos desviantes. Dirão que aquele soldado, imerso na frieza de um acto desumano, será a excepção à regra do tratamento digno que as tropas da coligação internacional reservam ao “inimigo”.

Há razões para concordar. Mas há também a dúvida metódica que lança a interrogação: aquele episódio foi testemunhado por uma câmara, e as imagens difundidas para todo o mundo; quantas vezes casos semelhantes se terão passado na penumbra da opinião pública? Será tão linear aceitar que este caso é um desvio lamentável, uma excepção ao comportamento normal dos militares dos Estados Unidos e dos países aliados? Quem o pode afirmar com convicção, se não há provas do contrário?

O deslize foi um golpe de misericórdia na imagem que o exército dos Estados Unidos quer transmitir ao mundo. E para o próprio país, que tanto se orgulha da força militar que dispõe, afinal o esteio da sua superioridade na ordem internacional. Neste episódio, só por distracção de quem comandava a operação se pode acreditar que a captura de imagens fosse possível. Eis porque se trata de um deslize. Eis também porque fica um enorme ponto de interrogação a pairar: seria mesmo um comportamento excepcional, porque intolerável, ou corresponde à conduta normal daqueles militares?

O exército dos Estado Unidos não se livra da vergonha que vem chamuscar a reputação que acreditam ser inquestionável. Depois de Guntánamo, depois das cenas humilhantes da prisão de Abu Ghraib, agora a dúvida lançada pela oportuna câmara da CBS. São tiros a mais no próprio pé. Como se não bastasse, foi dada a possibilidade ao comandante do pelotão para dizer de sua justiça. Em vez de uma condenação enérgica, destoou. Falou mais alto a solidariedade corporativa. Num discurso carregado de tiques bélicos, o guerreiro de serviço tentou justificar o acto cometido pelo seu comandado. Ao ouvir este militar, tive o assomo espontâneo de o chamar “animal”. Retrocedi, porque não quis ser ofensivo para os animais.

Ainda temos que aguentar a retórica oficial de que a civilização ocidental é superior, que se distingue da civilização árabe. Porque estes vivem ainda mergulhados num estado de selvajaria que nós, ocidentais, já deixamos para trás com as brumas da memória. Só que a estupidez humana é transversal às dicotomias civilizacionais. Selvajaria há em todo o mundo, com diferenças de requinte e de grau. Injustificável é a insistência em fixar a diferença entre “eles” e “nós” fundada na apetência para a selvajaria.Se é verdade que todos os actos de selvajaria são criticáveis, mais o são aqueles que têm origem nos arautos da superioridade civilizacional. Esta superioridade supõe que a selvajaria foi varrida para debaixo do tapete. Mas, às vezes, o vento que sopra forte destapa o tapete, deixa à mostra a selvajaria latente que estava em hibernação. Nesse momento não há diferenças entre a selvajaria de ambos os lados.

Sem comentários: