2.11.04

Claques de futebol, os bárbaros do século XXI

São, juntamente com as pessoas pouco recomendáveis que enxameiam o dirigismo desportivo, os cancros do futebol moderno. Por hoje vou-me concentrar nos efeitos perniciosos das claques organizadas, energúmenos sem quartel, os novos bardos da violência, cultores de um fanatismo sem limite. Elas argumentam que é o seu apoio incondicional, do primeiro ao último minuto, que incentiva os jogadores a transcenderem-se a si próprios. E são eles que melhor exemplificam a cegueira clubista. Não são os únicos que padecem deste mal, que os impede de analisar um jogo de futebol com imparcialidade. Muitos outros adeptos, de diferentes origens sociais e qualificações académicas, estão irmanados do mesmo mal.

Mas há uma diferença de vulto: as claques são laboratórios de violência organizada, acoitam meninos mal-educados. São um ninho de fundamentalistas, tão perversos como os fundamentalistas que noutras paragens do globo se socorrem da violência para atingir os seus fins. Os hooligans domésticos exageram no fundamentalismo da análise. Está-lhes vedado o uso da violência institucionalizada – esta é a linha que separa ambos os tipos de fanatismo.

De ontem vem a notícia de mais um episódio de violência de uma claque. Neste caso, daquela claque que é useira e vezeira na violência – uma coisa chamada “Super Dragões”, a claque mais representativa do clube da cidade. Com a agravante do episódio ter, como alvos, os jogadores da própria equipa que dizem apoiar. Ao que foi informado, os meninos da claque viajaram no mesmo avião da equipa, entre o Funchal e o Porto, tendo disparado ofensas verbais e ameaças à integridade física dos jogadores. À chagada, não satisfeitos com o clima de intimidação, decidiram perseguir o autocarro que transportava a equipa até ao hotel onde ia ficar hospedada. À saída do autocarro, mais impropérios, mais ameaças, com promessas de vidas ceifadas caso a equipa continue a não oferecer as vitórias esperadas.

Não é caso para ficar surpreendido. Do passado vêm histórias infindáveis da violência aspergida pelos arruaceiros que, orgulhosos, trajam sinais identificativos desta claque. Sempre com o apoio oficial dos dirigentes do clube – de outro modo, como entender que consigam viajar para todo o lado com a equipa, quando os membros da claque não vêm de estratos altos da sociedade? Se não existe este apoio, nem que por portas travessas, de onde vêm os rendimentos que possibilitam o corrupio turístico a gente de poucas posses?

Este episódio é a prova da insensibilidade, da impaciência e, acima de tudo, da ingratidão destes energúmenos. Esquecem-se que há poucos meses foram alguns dos jogadores que insultaram que trouxeram até si o orgulho de uma época vitoriosa à escala nacional e europeia. Estes fedelhos têm memória curta. Para esta gentalha, a modalidade devia ser condicionada à hipótese da sua equipa vencer todos os jogos. Ela teria o monopólio do primeiro lugar – as outras que lutassem pelos lugares secundários.

Inquieta-me saber que há investigadores universitários que dedicam o seu tempo a estudar esta claque como fenómeno antropológico. Como se houvesse grandes explicações antropológicas para o comportamento primário das pessoas pequeninas que participam dos rituais tribais desta claque. Talvez haja explicações antropológicas para o saque que eles protagonizam em estações de serviço na auto-estrada Porto-Lisboa. A explicação é simples: sinal de um consumismo desenfreado, que estes arautos da justiça social do século XXI se dignam vilipendiar em sinal de protesto. Ou será, antes, manifestação da gente pouco recomendável que habita esta claque, vinda de zonas degradadas e meios sociais de duvidosa reputação, que destroem apenas pelo prazer de destruir?

Neste lamentável caso das ameaças a jogadores da equipa que dizem apoiar, haverá também uma explicação antropológica, uma circunstância atenuante do comportamento selvático? Ou será mais uma exibição do odor fétido que anda de braço dado com esta claque, que não hesita em servir-se de meios de duvidosa legitimidade quando os resultados desportivos se desviam do rumo traçado? Faz-me lembrar a doutrina de Brejnev, nos tempos da guerra-fria: o exército soviético podia intervir em qualquer país comunista quando o país se estivesse a desalinhar do internacionalismo comunista. Outra vez o dualismo meios-fins.

A gentinha que faz parte desta claque é, como disse, pouco recomendável. Ao que consta, muitos têm problemas com a justiça (criminalidade menor, é certo, mas um cadastro exemplar). São operacionais de um fanatismo exacerbado, a linha oficial do clube que necessita de construir inimigos putativos para se manter no topo, para fidelizar os apoiantes que se revêem, acima de tudo, num sentimento anti-Lisboa. Estes talibans têm os seus cultos de personalidade: o patriarca que comanda as hostes há mais de vinte anos, que necessita da claque como quem precisa de oxigénio para respirar.

Se este fosse um clube dirigido por gente civilizada, no dia seguinte teríamos uma conferência de imprensa a verberar os comportamentos animalescos da claque. Nada. As cumplicidades são tão altas que o silêncio é a regra de ouro. O que me faz pensar se estas movimentações não são orquestradas com a anuência superior, criando um clima de terror que há-de forçar os praticantes a melhorarem o seu desempenho.

Sem comentários: