12.11.04

Roteiros gastronómicos

Quando puxava pela cabeça para encontrar tema para hoje, ocorreu-me escrever sobre o último CD dos Sigur Rós (Von, na verdade o primeiro álbum, republicado agora que a fama internacional chegou a este grupo de islandeses). De repente fui assaltado por uma nostalgia dos tempos em que um grupo de amigos percorria, religiosamente, os caminhos de um roteiro gastronómico feito ao sabor do acaso.

Eram tempos em que o tempo passava com outra velocidade. Tempos em que tínhamos tempo para cada um de nós, sem estarmos absorvidos pelas exigências da profissão que nos fez adultos. Não que fossemos irresponsáveis naquela altura. A idade da adolescência já tinha sido dobrada – estávamos todos nos “vinte-e-alguns”, formados, em início de vida profissional. As famílias ainda não tinham sido constituídas. As namoradas escasseavam, o que conferia outra margem de manobra que as exigências do coração impedem.

Eram tempos em que nada era programado. Apenas nos encontrávamos e, olhando uns para os outros, interrogávamos o que havíamos de fazer. Nesses tempos, em que ainda não ficávamos assustados quando líamos os valores das análises sanguíneas, tínhamos hábitos desregrados. Com frequência metíamo-nos nos carros e percorríamos quilómetros atrás de quilómetros ao encontro de restaurantes afamados, longe da nossa cidade. Afamados por constarem de roteiros gastronómicos publicados, ou por fazerem parte do cardápio de referências que passavam de boca em boca, chegando até um de nós.

Os quilómetros que galgávamos eram o património do convívio que se solidificava durante as viagens. O tempo que nos separava dos restaurantes era dedicado a conversas que nos faziam crescer, que intensificavam as cumplicidades, essencial nutriente da amizade. Esta cumplicidade assentava à mesa dos restaurantes. Sentar à mesa era sinónimo de outros prazeres: os visuais (sim, os olhos também comem), mas sobretudo os gustativos. Era com um prazer inaudito que degustávamos as iguarias que desfilavam diante de nós, um pouco por todo o lado.

De repente, e só como amostra, vêm à memória estes santuários gastronómicos: o Solar Bragançano, em Bragança, com a sopa de castanhas outonal, a posta à mirandesa suculenta, o serviço aprimorado do dono do restaurante, a música clássica como pano de fundo. As lulas com leite de coco e caril (o manjar chamava-se, apelativamente, Maracanã) num restaurante, que agora não recordo o nome, em Cascais. As costelinhas grelhadas no Álvaro, em Valença do Minho, regadas com as malgas de vinho verde que, ao início, tresanda a xarope mal amanhado mas que ia fluindo com ligeireza com a ingestão das ditas costelinhas. A vitela assada do Zé da Menina, em Fafe, num intervalo dos muitos ralis a que assistíamos na zona (onde uma vez esvaziámos um reserva de Borba de 1984 pelo preço da chuva – parece que os donos ignoravam a relíquia que estava perdida, algures, numa arrecadação). As idas ao Camelo, em Seia, em passagem para o habitual sku invernal na serra da Estrela, com o bacalhau com broa que na altura era opíparo (mas não agora, impregnado de gordura), o humor contagiante do senhor Jorge Camelo, e a deslumbrante sobremesa que nos era oferecida – um requeijão acabado de chegar do Sabugueiro, que se desfazia na boca ainda quente, misturado com um excelente doce de abóbora e amêndoa ralada.

Esta é apenas uma amostra que, ao correr da pena (melhor: ao bater das teclas…), salta da memória. Outros seriam os locais que preenchiam o imaginário de tempos idos em que a disponibilidade para estas andanças era diferente. É apenas um cheirinho dos odores, dos sabores, dos tintos aveludados, da boa disposição, das amizades que foram sendo nutridas entre os comensais. Um assomo de nostalgia, portanto.

A intenção do texto de hoje era escrever sobre Von, dos Sigur Rós. Acabei a deambular pelos caminhos ímpios da gastronomia, dos locais mais emblemáticos onde melhor se come no país. Depois de ouvir aquele CD dos Sigur Rós, a reacção espontânea é acabar a falar de comida, é ser levado pelo arrebatamento das excitações culinárias que alimentam a alma. Porque o último exercício musical dos Sigur Rós é tão desértico, tão vazio de sonoridades (pelo menos das que estava habituado), que por mais que ouça o álbum chego ao final com a sensação de que comprei gato por lebre. É como ir a um restaurante para saciar os irreprimíveis apelos gustativos e de lá sair com a frustração de que é urgente entrar no primeiro restaurante à mão para cumprir a tarefa. Daí a digressão gastronómica de hoje.

1 comentário:

Anónimo disse...

Agora fizeste-me sentir velho. Comecei a ter aquele sentimento que tantas vezes acompanhamos nos nossos pais (enfim, falo por mim) quando dizem "no meu tempo... era assim que viviamos..."
Tenho saudades desses tempos. Mas mais do que a comida, tenho saudades da nossa disponibilidade mental. Podíamos passar 2h a discutir se a curva tal se fazia melhor em 2ª ou 3ª...
Hoje há outros prazeres. Se calhar daqui a 15 anos vamos recordar esta época com a mesma nostalgia.
Já que as coisas são mesmo assim, vamos lá tratar de sugar o que esta vida tem de melhor: sentirmo-nos vivos! Alegres, chateados, com raiva, às gargalhadas...

Ponte Vasco da Gama
P.S.- Este último dos Sigur Rós é mesmo gato por lebre. Escapa a música nº5. Mas estão perdoados. Os anteriores ainda lhes permitem muitas asneiras até deixarem de ser fabulosos.