16.11.04

Golpada no direito à privacidade: a morte do sigilo bancário decretada por Bagão Félix

Sessão de informação às bases, promovida em conjunto pelos partidos que nos governam. Às bases, mas com anúncio no jornal (publicidade paga), convidando os não militantes a estarem presentes. O ministro das finanças ia à Maia, quinta-feira à noite, para proferir uma prelecção sobre o orçamento de Estado para 2005. A imprensa foi convidada a estar presente. Esta, pressurosa, não podia deixar de corresponder ao convite.

A grande novidade (para quem, como eu, não se deu ao trabalho de ler o texto volumoso do orçamento para 2005) saiu da boca de Bagão Félix: o sigilo bancário vai acabar de vez. Não se trata de quebrar esta regra de ouro do negócio bancário apenas quando há investigações policiais – por exemplo, em crimes de colarinho branco ou de tráfico de droga. Está em causa o levantamento do sigilo bancário quando um contribuinte for alvo da perseguição do fisco por suspeita de não pagamento de impostos.

O Estado parece querer juntar-se aos gestores de conta dos bancos onde o nosso dinheiro está depositado. Exibindo a sua vocação paternalista – que, com a pose deste ministro das finanças, atinge um dos seus expoente máximos – o Estado surge, magnânimo, apaziguando os cidadãos. As suas garantias de que os dinheiros depositados à guarda dos bancos são bem aplicados aparecem reforçadas pela brigada de diligentes fiscais tributários que vem dar uma mãozinha aos gestores de conta. Pela minha parte, dispenso a fartura.

Dispenso-a porque esta inovação ilustra mais um passo para o Estado intrusivo que engorda com a passagem do tempo. Em vários domínios antes o Estado confiava na iniciativa dos particulares, nota-se uma infusão de legislação que corta pela raiz este espírito de auto-regulação. Teremos, de agora em diante, a incógnita a pesar sobre a cabeça: estarão as nossas contas bancárias a ser objecto de devassa pelo bando de fiscais tributários?

Bem sei que “quem não deve não teme”. O adágio popular não faz sentido nesta matéria. Eu não temo porque, infelizmente, não consigo fugir aos impostos. Nem tão pouco temo porque as movimentações bancárias que faço não revelam sinais de suspeita. Tenho razões para estar descansado. Mas não é isso que importa. Mais importante do que saber se temos motivos para temer a invasão do Estado às nossas contas, é o acto em si. O contrato bancário tem os seus alicerces fundados numa relação de confiança entre o banco e o cliente. As medidas que autorizem o rompimento do sigilo bancário são um rombo vigoroso nos alicerces do negócio bancário: não só para os bancos, que têm que abrir as portas às brigadas de fiscais que queiram passar a pente fino certas contas bancárias; mas sobretudo aos clientes, que gostam de ver na privacidade um bem inexpugnável.

É disto que se trata: de respeitar a privacidade que o dinheiro deixa à mostra. Os mais ingénuos insistem em ver no Estado uma entidade abstracta, sem rosto humano, como se os funcionários que o servem não fossem pessoas com motivações próprias. Estes funcionários não têm que saber onde gastamos o nosso dinheiro. Não importa aqui que “quem não deve não teme”. Tanto vale para as pessoas que fazem aplicações financeiras duvidosas, como para aquelas que fazem pagamentos com cartões de crédito para sustentar vícios licenciosos, como para as compras banais que todos fazemos. Independentemente do destino que damos ao dinheiro, o Estado não deve ter o direito de aceder a essa informação. Sob pena de estarmos todos sob suspeita, de a qualquer momento um funcionário zeloso e voyeur devassar a nossa intimidade.

Não fico sossegado em saber que os meus movimentos bancários são escrutinados por um burocrata qualquer. Que ele saiba que faço compras no supermercado Y, que compro roupa nas lojas Z e W, que compro livros através da Internet às editoras K e L. Inquieta-me saber que caminhamos para um modelo de sociedade que não hesita em fixar as bases de um sistema de vigilância apertado, em que acabamos todos por estar na mira das suspeitas. Uma sociedade em que estaremos todos a desconfiar de todos. Ora, como aprendi que quem desconfia não é de confiar, a medida de Bagão Félix é sintomática da confiança que ela (e o seu autor) merecem.

Para quem acusa este governo de “excessos de neo-liberalismo”, a decisão de acabar com o sigilo bancário é a sua antítese. Não vi as carpideiras de serviço, os que sempre se afogueiam quando suspeitam de derivas “neo-liberais”, a aplaudir a fobia persecutória de Bagão Félix. Três possíveis explicações para a ausência: ou andam distraídos, ou não lhes convém o aplauso, ou não sabem do que falam quando enxameiam os discursos com o “maléfico” neo-liberalismo.

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