“Quando um casal entra num processo de ruptura, mais do que falar devem saber escutar-se um ao outro”. Psicólogo (não fixei o nome) de um gabinete de consultores que faz acompanhamento a pessoas que entram num processo de separação.
A reportagem dera o mote: à medida que passam os anos aumentam os divórcios. Sendo situações de vida que trazem traumas, que afundam as pessoas em problemas psicológicos, nada melhor do que um gabinete de consultores que presta os seus serviços a quem esteja desnorteado, no meio de um doloroso processo de separação. O gabinete é composto por psicólogos e advogados. O acompanhamento garante-se nas duas vertentes mais requisitadas: dos danos causados na alma, a necessitarem de terapia de psicólogos; e das consequências materiais, onde pontificam os diligentes advogados.
Sinais da modernidade. Sinais de que a dependência do outro se intensifica com o advento de novos tempos. Onde antes estava uma dependência assente nos dogmas da religião, estão agora novas formas de dependência humana. As religiões atravessam crises, incapazes de chamar a si tantos fiéis como no passado. As pessoas parecem dirigir as suas dependências para outros níveis, dessacralizando essas dependências interiores. Entramos numa era em que actos corriqueiros da vida – pelo menos eram-no outrora – exigem uma co-participação. Já não basta uma iniciativa da pessoa de quem dependem esses actos (e a quem eles aproveitam). É necessário encontrar no outro um ancoradouro de partilha de responsabilidades.
Esta transmissão de dependências pessoais ilustra o mundo de hesitações que nos ata à indecisão. Perante conflitos de consciência, é cada vez mais difícil tomar decisões. Com a complexidade da vida moderna (ou não será isto apenas um pretexto para tornar difícil o que é fácil?), as decisões mais corriqueiras passam a ser dramas que prendem as pessoas ao império da indecisão. Somos incapazes de decidir, sozinhos, coisas banais. Temos que chamar os outros para se co-responsabilizarem dos nossos actos. É um movimento contínuo em que todos estendemos a mão às decisões dos outros. É a colectivização das hesitações que arrepia o caminho à colectivização das decisões pessoais.
A novidade dos gabinetes de acompanhamento em processos de separação é mais um paradigma da modernidade. Como viver o quotidiano é tão difícil, mais o é ainda a decisão que leva à ruptura de uma vida a dois. Há que procurar ajuda para fazer ver luz, como se as decisões de uma vida a dois se estendessem para a esfera de outrem, dos auto-intitulados especialistas. Como se fosse possível em poucas horas de acompanhamento colocar em cima da mesa anos de vida a dois. E, no entanto, os especialistas motivam os casais desavindos a socorrerem-se da sua prestimosa e milagrosa ajuda.
Sintomas da sociedade artificial, os gabinetes de aconselhamento pós-matrimonial (a designação é da minha lavra…) são um simples arremedo de negócio, uma forma de ganhar dinheiro com as indecisões tão fartas na vida moderna. Não acredito que possam ser grande ajuda, por mais que se esforcem em materializar os elevados conhecimentos saídos da psicologia (mau grado a elevada subjectividade que é um obstáculo a soluções padronizadas). Menos compreensível ainda é saber que anos de vida a dois podem ser desnudados perante desconhecidos, com o pretexto de se encontrar uma tábua de salvação para os descaminhos entretanto palmilhados. Seja para resolver uma vida a dois, seja para a salvar, custa-me a crer que as decisões que só competem ao universo do casal possam ser partilhadas com outros, por mais especialistas da matéria que se auto-proclamem.
Quanto às competências dos ditos especialistas, basta regressar ao mote deste texto: “Quando um casal entra num processo de ruptura, mais do que falar devem saber escutar-se um ao outro”. Esta é daquelas sentenças que dão o reconforto de se entrar no gabinete com uma mão cheia de nada e de lá sair com as duas cheias da mesma coisa. A menos que a minha compreensão para metáforas esteja hoje diminuída, alguém me consegue explicar como podem duas pessoas prescindir de falar uma com a outra para darem primazia a escutar o parceiro?
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