As variações semânticas no debate anual sobre o orçamento de Estado para o ano vindouro não são significativas. Hoje em dia parece unânime que a actividade do Estado não pode levar a um descontrolo das contas públicas, devido aos efeitos que se acumulam para o futuro e que ameaçam tornar essa actividade financeiramente insustentável. Dos cânones das finanças públicas contemporâneas faz parte a regra de ouro da contenção orçamental, que uns mais zelosos chamam disciplina orçamental. Já não são aceitáveis défices que quase chegam a 10% do PIB. Nem dívidas públicas exageradas, que oneram injustificadamente as gerações futuras.
O panorama de disciplina orçamental tem que ser contextualizado. De acordo com o pensamento dominante, ainda se aceita a possibilidade do Estado apresentar despesas superiores às receitas previstas. O défice é visto como um instrumento de política económica – ou, em homenagem à verdade, como uma afirmação da presença dominante do Estado na sociedade. Esta visão predominante fala de disciplina orçamental num sentido diferente do contemplado por uma escola mais radical, que gostaria de ver uma equivalência entre a expressão e a diminuição da presença do Estado na economia. Para os radicais, disciplina orçamental é sinónimo de impossibilidade de défices orçamentais, mesmo a ambição do orçamento oferecer um saldo positivo.
Devido à participação do país na União Económica e Monetária, sabemos que ter um défice superior a 3% do PIB envolve um elevado risco de nos serem impostas multas (hoje atenuado devido ao flagrante desrespeito da França e da Alemanha). Como somos um país pequeno, não podemos incorrer no luxo de esboçar um orçamento que, à partida, viole esta regra. Portanto, os governantes têm que alinhavar um orçamento cujo défice não rompa com o limiar dos 3% do PIB.
Olhando para as duas rubricas do orçamento, as opções para conter o défice orçamental são variadas. Pode-se pensar em diminuir as despesas públicas, o que significa emagrecer a presença do Estado. Pode-se antecipar um aumento das receitas públicas, o que exige um agravamento dos impostos suportados pelos contribuintes. Não será politicamente popular, porque ninguém gosta de pagar mais impostos – sobretudo quando a percepção geral é a de que a carga tributária é elevada para a qualidade dos bens públicos fornecidos pelo Estado. Pode-se ainda imaginar um acréscimo das receitas públicas sem envolver o aumento das taxas de impostos. Aqui o combate centra-se na luta contra a evasão fiscal.
Muitas interrogações emergem a propósito da fuga aos impostos: porque fogem os contribuintes aos impostos? Por acharem que as taxas são muito elevadas, traduzindo uma inadmissível intrusão do Estado na riqueza criada? Será apenas um esquiço do traço sociológico do português padronizado, que se tenta furtar aos seus compromissos quando eles envolvam sacrifícios para o seu bem-estar? Ou será apenas por necessidade? (Aqui penso nas empresas: por saberem que do pagamento de impostos resulta um encurtamento da margem de lucro que pode questionar a sobrevivência do negócio e a manutenção de postos de trabalho.)
É irónico concluir que, nestes casos, a evasão fiscal é um expediente necessário para evitar o aumento do desemprego. É cínico, logo hoje que é apregoada a doutrina do Estado orientado para as preocupações sociais; é cínico, agora que tantas vozes clamam pela criação de emprego como a prioridade da política económica. Vendo, afinal, que é o não pagamento de impostos que melhor alcança este objectivo. O que só demonstra que não é o Estado que consegue criar empregos. São as empresas. E se o Estado mantiver o seu afã de perseguir as empresas que andam a fugir aos impostos, tudo o que se consegue é aumentar o desemprego. Eis o paradoxo do frenesim fiscal quando o combate à fraude fiscal é elevado à prioridade das prioridades.
É lamentável que não haja coragem política para aplicar a medida mais racional: o corte nas despesas públicas. Teria a vantagem de permitir a redução dos impostos, logo sendo possível (pelo menos em teoria) a diminuição de casos de fraude fiscal. Daí, a diminuição de casos em que a “autoridade do Estado” é questionada. Muitos afiançam que as despesas públicas são “rígidas”, que é impossível cortar na factura das despesas que o Estado tem que pagar. Esta conclusão é uma simples petição de princípio, sem que haja um esforço sério para saber onde é possível cortar (e ao falarmos de despesas públicas, fácil é encontrar gastos sem explicação, benesses que são injustificáveis).
Na falta de coragem para intervir através das despesas, resta a opção de actuar mediante as receitas. Quando a opção é a de combater a fraude fiscal, fico com a sensação (reconfortante…) de que o Estado faz o papel do papalvo convencido que pode ir para o meio de um descampado à caça de gambozinos. Entra lá com uma mão cheia de nada e de lá sai com outra mão cheia do mesmo (a menos que os fiscais de impostos passem a ser o maior contingente de funcionários públicos…).
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