E se um dia, ao acordar, estivesse desfraldada a bandeira amarela e vermelha de Espanha? E se um dia, de surpresa, Portugal passasse a ser mais uma região autónoma de Espanha? Eis o fantasma que amedronta os que excomungam o iberismo. Aqueles que, esbaforidos, acusam tudo e todos do pecado do iberismo, mesmo aqueles que, não o sendo, não renegam com vigor o espantalho de uma união ibérica que dilua a tão preciosa soberania lusitana.
Devemos recear uma espanholização de Portugal? A resposta remete para duas dimensões, separadas por uma diferença de grau. Por um lado, a hipótese mais radical, tão do agrado dos espanholistas que não desdenham construir um imperiozinho que abarque toda a península ibérica: uma união ibérica, fazendo ajoelhar Portugal ao jugo de Espanha. A segunda hipótese mantém as soberanias nacionais separadas, apenas abrindo as portas para uma crescente presença económica e cultural dos vizinhos espanhóis. No primeiro caso, o caos para os anti-iberistas – na forma de uma iberização política da península; no segundo caso, apenas uma espanholização de facto, conservando-se imaculada a virgindade soberanista que amansa as consciências dos que se querem separados dos vizinhos do lado.
O tema estava agendado há duas semanas. Data da primeira visita do neófito primeiro-ministro ao estrangeiro. Local escolhido: Espanha. Sócrates preparou o terreno para a sua primeira visita oficial ao exterior. Encomendou uma entrevista ao El País, enfatizando as três prioridades da política externa nacional: “Espanha, Espanha e Espanha”. Adivinho a indisposição gástrica que terá provocado nos anti-iberistas. De como terão interpretado esta afirmação: de como a leram de acordo com o sentimento de nacionalismo arreigado que domina o espanhol típico. A frase bombástica de Sócrates equivale a uma manifestação de subserviência, como se Portugal não alcançasse mais longe do que a fronteira pirenaica e toda a orla mediterrânica. Um país de cócoras diante de um gigante que se consuma nos braços tentaculares que nos asfixiam, aniquilando o nosso devir autónomo. Que cenário dantesco!
Há que descontar o fatalismo próprio de quem, como os extremados anti-iberistas, vê chifres na cabeça do cavalo. Estes fantasmas do iberismo deixaram de fazer sentido. Com a participação de ambos os países na União Europeia, a possibilidade de Portugal ser deglutido pelo papão espanhol só entra nas cogitações de alienados. Contudo, eles insistem, como se a hipótese fosse real. Concedo: por vezes, é difícil suportar a vaidade espanhola, que nestas coisas de apego nacionalista só rivaliza com os franceses. É difícil haver povos mais chauvinistas do que os franceses e os espanhóis. É interessante como dentro da península se encontram dois povos que contrastam nas idiossincrasias nacionais: nós, por natureza pessimistas, descrentes nas nossas possibilidades; os espanhóis, num elogio da grandiosidade que não têm, confiantes de que estão possuídos de um desígnio divino que faz deles um povo escolhido.
Ao descontar a possibilidade inviável da iberização política, fica a hipótese da espanholização de facto. É aqui que o empresariado português se distingue pela sua bafienta postura, ainda e sempre dependente da mão protectora do Estado. São os mesmos que protestam contra a presença excessiva do Estado, na forma da tentacular burocracia que é obstáculo para tudo e mais alguma coisa. Os mesmos que, sem capacidade para o jogo da concorrência internacional, estendem a mão à protecção divina que o Estado está habituado a conceder. São eles que reclamam oportunidades para entrar no mercado espanhol. Querem entrar no mercado espanhol da mesma forma que os espanhóis invadiram o mercado lusitano.
Um mar de equívocos: esquecem-se que os espanhóis entraram em força no nosso mercado sem precisarem de empurrões artificiais dados pelas respectivas autoridades. Apenas porque têm capacidade para tal – algo que às nossas pequeninas empresas ainda falta. É tudo uma questão de dimensão. E se as lamúrias antes se voltavam contra a “invasão” de espanhóis, agora os queixumes vão contra as dificuldades para entrar no mercado espanhol. Sem saber que, de ambas as vezes, as autoridades nada podem (ou devem) fazer.
É e curiosa a desfaçatez: protestam contra a espanholização do nosso mercado. Ignorando que a entrada de empresas espanholas só faz bem à economia nacional: elas são consumidoras de produtos nacionais, mantendo em actividade certas empresas portuguesas que, de outro modo, já teriam fechado as portas; e empregam muita gente, contribuindo para menos desemprego e permitindo que estas pessoas consumam mais (o que também é positivo para as empresas domésticas). É a espanholização da economia nacional que alimenta uma economia que não se perde nos rastos sombrios de uma pequenez cada mais periférica.
Uma interrogação final: porquê tanto temor em relação à “invasão” espanhola se, num contexto de globalização, pouco protestamos contra outras “invasões” – a norte-americana, a inglesa, a francesa? Dois pesos, duas medidas – ou o caminho da incoerência.
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