1.4.05

Vícios de nacionalidade: apoiar um dos nossos, ou o melhor?

A propósito da “indigitação” de Guterres para Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados. A notícia encheu de contentamento meio mundo. A começar pelo próprio, subscrevendo uma salutar tendência de individualismo que assaltou os políticos do burgo: primeiro a carreira pessoal, para plano secundário o sacerdócio do serviço público. Afinal os políticos têm mesmo motivações próprias, não são seres maquinais que se colocam ao serviço do “interesse público”. Está na moda a vertigem das carreiras internacionais, tão mais enobrecedoras do brio próprio do que a comezinha política da nação.

Depois, os camaradas de ideologia exultaram de contentamento. É compreensível. É “um deles”, o reconhecimento de que alguém que professa o mesmo credo ideológico está talhado para um cargo internacional de tamanha visibilidade. É como puxar o lustro aos sinais de pertença: o ego insuflado, porque foi “um dos nossos”, mostrando que os adversários não têm calibre para rivalizar “connosco”. Sem surpresa, o engenheiro que sucedeu ao engenheiro designado veio, em nome do governo, declarar entusiasmado apoio. Adivinha-se uma luta sem quartel, com manobras diplomáticas de elevada exigência, para o antigo primeiro-ministro se abarbatar ao lugar. Mesmo que isso signifique uma deserção perdoável: ficam os cor-de-rosa órfãos de candidato a candidato presidencial.

E depois há o arrepio colectivo, de todos (e são muitos) que exibem o orgulho na portugalidade. São os patriotas que aplaudem de pé sempre que um patrício vinga lá fora. A prova de que a gesta lusitana perdura na história da humanidade, capazes que somos de rivalizar com os melhores. É nestes momentos que a nacionalidade traz ao de cima a veia emocionante. Até os que no passado foram adversários do nomeado conseguem esquecer rivalidades e elogiam o perfil, jurando a pés juntos que melhor do que ele não há – pelo menos noutros países.

(Um parêntesis para dar conta de como a vaidade pessoal incha estes perus que se agigantam desde a pequenez dos seus tamancos. Abordado pelos jornalistas, Guterres avisou que o cargo é irrecusável. Curioso. Ao que consta, ele é apenas um entre sete candidatos que vão ser entrevistados nas Nações Unidas. Todos partem da mesma posição, da casa da partida. Mas a coisa foi pintada como se “sua eminência” já tivesse a certeza de que a sinecura lhe está reservada. É caso para dizer: presunção e água benta…)

Esta identificação patrioteira leva-me às lágrimas. É uma visão paroquial. As pessoas não valem pelas suas qualidades inatas. Distinguem-se pelo passaporte que ostentam. Nisto, todos os países são iguais no comportamento. Uns com mais requinte – os que adejam sobre o culto da nação, como se um desígnio divino trouxesse para os nacionais qualidades ausentes nos estrangeiros –, outros de forma mais envergonhada. Quando há uma competição do género, assinamos de olhos fechados por baixo do nome da pessoa que tem a nossa nacionalidade. Nem interessa indagar acerca das qualidades humanas dos rivais, ou saber se o perfil se encaixa melhor nas funções. Aquele é um dos nossos, e tanto basta.

No meio disto, qual o papel reservado às competências pessoais? Elas são independentes do passaporte que os candidatos trazem à lapela. Voltando ao caso, nenhum dos rivais do engenheiro Guterres foi primeiro-ministro, o que engrandece o curriculum do “nosso”. E o passado, não interessa? Vamos ao baú das recordações: Guterres foi dos piores primeiros-ministros que a história de Portugal conheceu; desertou no rescaldo de um desaire eleitoral – abandonando as funções a meio, abandonando os camaradas socialistas que ficaram carentes de uma referência a meio do nada; arranjaram-lhe um “exílio dourado”, à frente dessa coisa pouco recomendável que é a Internacional Socialista. Tem viajado pelo mundo, exibindo superioridade intelectual e o desassombro das convicções de quem sabe que o socialismo (ou a social-democracia) é a ideologia suprema, a única com apetência para reconciliar o Homem com a felicidade. Na política doméstica, desaparecido em combate mas com uma missão sebastiânica que nunca fugiu de mira – o tabu presidencial, alimentado pelos seus camaradas e por um punhado de ingénuos com memória curta.

Repito: acredito nas pessoas pelas suas qualidades inatas, não pela nacionalidade. Pelo cadastro pouco recomendável de Guterres, e em nome da memória que não está adormecida, apetece-me dizer: qualquer um dos outros candidatos será melhor. Até porque a causa (proteger refugiados) não se compadece com personagens carregadas de tibieza.

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