16.7.07

Somos o povo mais honesto da Europa


Ouço um especialista em saúde oral debitar estatísticas. Retenho um dado: como tantas vezes sucede nos campeonatos particulares que comparam países europeus, há um em que estamos a encabeçar a tabela: o número de dentes per capita. Rivalizamos com a Albânia e a Eslováquia na escassez de dentes. Há duas maneiras de olhar para os números. Tanto podem ser lidos como a ordenação, em razão decrescente, do número de desdentados por país – e aí localizamo-nos no topo. Como podem ser lidos pela inversa, e aí os campeões denunciam a cauda da Europa, um certame de que não se tem orgulho em ser campeão.

Mas há uma faceta agradável nestes números, apesar da reacção imediata de desaprovação, censurando a incultura dos patrícios que teimam em fazer tábua rasa dos hábitos de higiene oral (que, pela ausência, levam à progressiva perda de dentes). Só para provar que mesmo nas façanhas que não fermentam o orgulho pátrio se lobriga esperançosa luz que tinge de cor o cenário que, de outro modo, seria deprimente. A alavanca é a expressão “mentir com todos os dentes que tem”. Quanto mais avantajada for a dentição, maior a propensão para a mentira. Uma personagem causticada por inúmeras visitas ao dentista, com um cadastro invejável em ablação dentária, oferece-se ao altar da honestidade forçada. Com pouco dentes para exibir, pouco dado à mentira.

O ratio dentário aparece na inversa proporção da queda de cabelo. Há um traço comum a ambos os fenómenos: serão os mais velhos que se entregam com maior probabilidade à carência de dentes e à ausência capilar. Perda de dentes e de cabelo são sinónimos de larga experiência de vida, curtida na idade que foi passando e levando dentes e cabelo. Onde as duas experiências de envelhecimento divergem é no significado perante a mentira. O esmero da idade, visível no abrandamento capilar, apura o sentido da mentira. Ao contrário, se é verdade a relação causal entre número de dentes e propensão para a mentira, os que envelhecem perdendo dentição vão conquistando um lugar privilegiado no altar dos honestos.

Não fixei de memória os países que contrastam com Portugal no campeonato da dentição. Serão países do centro da Europa. Porventura isso explica a crise civilizacional que alastra no ocidente. Sinal dos tempos: como prova do aumento da qualidade de vida, as pessoas chegam ao fim da vida com mais dentes. Com mais dentes para mentir, a crer na fórmula que ganhou foros de convenção – o “mentir com todos os dentes que tem”. Eis o dilema dos países mais avançados: elevados padrões de saúde oral aplainam terreno para a mentira congénita. Disso – mentirosos compulsivos – não carpem os lusitanos sua mágoas, já que as dentaduras fartamente esburacadas impedem níveis preocupantes de intrujice. Com poucos dentes para trincar, deixamos o papel de corsários da mentira aos vencedores deste campeonato particular.

Este é um dilema que angustia a civilização ocidental. O que é mais importante: o bem-estar material ou o respeito por valores? Ter dentes, e muitos, ou pelo desdentado cadastro sermos certificados pela propensão à honestidade? Os tantos críticos da materialização da pessoa terão abundante matéria para desvalorizar os predicados da higiene oral. Que interessa lavar os dentes e ir ao dentista curar das cáries, para prevenir a passagem do ponto sem retorno onde a extracção de dentes é fatal? Garantia de mais um ponto a favor da honestidade. Por cada dente perdido, menos uma carta a favor da mentira.

Doravante, fica facilitado o escrutínio das relações pessoais. Basta contar o número de dentes. Trocam-se fichas dentárias entre os amantes que iniciam uma relação. Ou abrem a boca para inspecção recíproca - e poucos dentes garantem fidelidade. Cientistas dedicados hão-de aprimorar uma escala que relaciona número de dentes com tendência inata para patranha. Aplicado ao mercado político, os partidos hão-de escolher candidatos desdentados. E teremos que nos habituar a novos padrões estéticos. Não como hoje, que achamos feia uma sorridente boca que mostra as cavidades onde outrora estavam enraizados dentes que apodreceram; o lastro dos honestos, quando a honestidade é caução necessária, será a boca alegremente ostentada em todas as perfurações onde já existiram dentes. A moralidade sobreposta à estética. Deixará de fazer sentido aquele verso de Cesariny (no poema “Pastelaria”):

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
”.


1 comentário:

Anónimo disse...

O mundo e um sitio perigoso, ou não fosse PORTUGAL coloniador, mas não sei não me entre na cabeça que um homem que a 25 anos tinha zero como fortuna hoje tenha milhões e milhões e milhões no imperio belmiro , porquê.