5.5.08

A pior profissão do mundo


Li há dias: uma brigada municipal de captura de cães maltratou um rotweiller. Terá sido chamada porque alguém fez a denúncia: o cão era feroz e teria atacado uma criança. Não se tratou de averiguar se a denúncia tinha um fundo de verdade. Havia que atalhar o mal pela raiz. A brigada dos valentes caçadores de cães fez-se ao caminho.

O resto, a fazer fé nos relatos de familiares do dono do cão, fez lembrar o cenário popularizado por séries de acção que retratam o combate ao terrorismo islâmico, com os atropelos à dignidade humana quando os agentes de contra-terrorismo usam tudo e mais alguma coisa nos interrogatórios. O cão terá sido barbaramente agredido, sem ter oferecido resistência aos captores. Quando os donos o foram buscar ao canil de Lisboa, o animal estava uma lástima. Até um olho fora do sítio tinha. Lacerações sem conta. E mal se tinha em pé. Como se não bastasse a violência sem sentido, o bicho foi atirado para uma gaiola imerso no seu sofrimento – como se fosse o golpe fatal, o derradeiro castigo pela culpa de que vinha acusado pela denúncia anónima. Ou pagava pela fama, a má fama que a raça dos rotweiller tem. Só havia um problema: quando a brigada o encurralou, na vizinhança ninguém deu conta de algazarra que seria a justificação (seria?) para a imbecil violência da brigada. Porque os caçadores de cães poderiam desculpar a sua violência dizendo que tinha sido em auto-defesa, perante a resistência oferecida pelo cão. Se o cão não ladrou, se ninguém notou barulho nas imediações do sítio onde a violência foi infligida a sangue frio, a estúpida brigada de captura de cães fica sem tapete para a sua acção. Para a sua acção ignominiosa.

Já tive o infortúnio de ser testemunha de algumas capturas de cães vadios por estas brigadas. Acho que não é preciso ter a sensibilidade apurada para os direitos dos animais para ficar chocado com a imagem de meia dúzia de homens abrutalhados munidos de redes e varas que têm na extremidade um laço a correr atrás de um cão, numa épica perseguição que às vezes termina mal, com a captura do cão. E às vezes termina bem, quando o canídeo ilude os perseguidores e escapa. Só que os funcionários têm destreza e apanham os cães, vezes de mais. Terão complemento de salário à comissão, por cada animal que capturam?

Esta gente recrutada para a brigada municipal de captura de cães vadios deve ser escolhida a dedo. Só por decoro não serão publicados em edital os requisitos exigidos – de resto, o edital faria constar, como predicado essencial, um ódio de morte aos cães como condição de excelência para o recrutamento. É pena que a comunidade chinesa esteja bem estabelecida nos negócios. Se é verdade que os chineses comem cães – o que revela o lugar tão baixo que o cão ocupa na escala de afectos perante os animais – se houvesse chineses desempregados, ou chineses em estado de necessidade como acontece com imigrantes de leste, as câmaras municipais teriam nos chineses matéria-prima de excelência para engrossar as fileiras das brigadas que erram pelas ruas em vigilância dos canídeos que andam a conspurcar a boa consciência dos cidadãos tão incomodados pelas matilhas que não pertencem a ninguém.

Sim, esta é a pior profissão do mundo. Não são os lixeiros, ou as prostitutas, ou os políticos. São os caçadores municipais de cães. Do alto da sua boçalidade, na ausente comiseração por cães que vieram ao mundo sem lhes calhar em sorte terem um dono, uma casa que os acolhesse da rua selvática por onde erram. O gélido coração que lhes dá alento para a perseguição que finda com a captura do cão, em plena luz do dia, diante do olhar chocado dos transeuntes, atónitos, sem reacção ao serem involuntárias testemunhas de tamanha violência. É a pior profissão do mundo, não só pelo que fazem, pela maneira desapiedada como o fazem, mas também porque devem ser os funcionários públicos mais odiados quando entram em acção e ferem a sensibilidade dos transeuntes. Mais odiados que os funcionários dos impostos, outros caçadores, os que zelosamente impedem que os cidadãos deixem de pagar os impostos devidos.

Estas brigadas espicaçam em mim uma revolta que não se traduz em palavras. Tanta que às vezes sonho, acordado, com brigadas de sinal contrário – brigadas que andariam a vigiar as brigadas que querem caçar os cães vadios, e que teriam mais destreza para boicotar a tarefa dos caçadores de cães. Nem que houvesse que caçar os caçadores de cães.

1 comentário:

Anónimo disse...

aff...