15.5.08

Verrinoso


Há no provocador nato traços de um acidez irreprimível. Que tem o condão de cativar antipatias, anticorpos abundantes. Diriam: na raiz, o mau feitio congénito. Que, apesar de ser reconhecido, é alimentado à exaustão. Como se fosse o oxigénio necessário à subsistência, correndo o risco, não o fazendo, de se deitar nas remansosas águas da indolência mental.

O problema é que há pessoas atingidas pela corrosiva maneira de ser. Pessoas trazidas para a arena verrinosa pelo antagonismo que se alicerça. Uma teimosa verve que aborrece a integridade dos atingidos pelas provocações inatas. Não há ofensa nesta acidez impenitente – ou se há quem se considere ofendido, não era essa a intenção do verrinoso de serviço. Pelo caminho, um rol infindável de anticorpos à medida que se espalha a aura corrosiva. Das imperceptíveis mensagens escondidas nas entrelinhas, à ironia que se desnuda detrás dos espelhos: há quem perceba a cilada inofensiva, há os outros que não a conseguem discernir, e outros ainda que preferem desprezar o acto verrinoso.

A acidez sem fim é o lenitivo para uma existência assombrada pelos fantasmas dos outros. Há no perene incómodo com a existência alheia um certo desassossego interior, a confissão indirecta de amarguras vindas de trás, mal resolvidas. Porventura esta seja a melhor explicação para a militante atitude corrosiva, que entrega a mente no adocicado veneno da provocação. Pretendendo que a provocação seja uma perturbante invasão do seu destinatário, ou apenas que ele ou ela perceba que há na provocação um pretexto para a discussão de ideias. Ou, até, a não declarada confissão de que as ideias que nos outros trazem incómodo são o fruto de uma paradoxal inveja: as ideias que resultam da incapacidade de serem seu património.

Não há maldade na reiterada acidez destilada. E se nos outros a reacção é tangível à ofensa, ou se em vez de abraçarem a porta entreaberta para a discussão de ideias que a corrosiva atitude dá alento, a eles pertence a tutela da verrinosa personalidade que imputam ao provocador. Sobra a ambiguidade, o sabor indefinido que em alguns irrompe na incerteza da qualificação dos actos que, à primeira vista, seriam um insidioso comportamento.

O sabor amargo no fautor da corrosiva estaleca será ingrediente para uma conturbada existência. Nos alvores de uma conflitualidade perene, sem que essa conflitualidade atinja foros de flagrante embate que traga enraizadas inimizades à superfície. Contudo, uma existência atormentada pela possibilidade dos destinatários da ácida ironia perceberem mal o contexto, reagirem desabridamente e se instalar uma equivocada aversão. Ao verrinoso sobra a incapacidade para moldar as reacções alheias. Não se pode é demitir de um terreiro onde as ideias diferentes devem ser confrontadas, onde os pressupostos que as antecedem não se podem esconder na relapsa impossibilidade de serem expostos.

O verrinoso não se contenta com os bons costumes. Incomoda-se com as meias palavras, a cortesia hipócrita que varre para debaixo do tapete os antagonismos que podem dar lugar a desconfortáveis divergências. Nos brandos costumes, fonte de idiossincrasia paroquial, a explicação para a letargia dominante que nos afunda num atraso persistente. Se há palavra que devia ser proibida? Consenso. É por isso que o verrinoso se insatisfaz com a complacência dominante. Insurge-se contra a dormência dos que aplaudem a ausência de dissidências, por acreditarem que do unanimismo ressalta o avanço da espécie. Esquecem-se que a humanidade cresceu da apaixonada discussão, onde as ideias diferentes foram atiradas para a arena das divergências.

A acidez corrosiva é fermentada pela perturbação dos que se escondem da discussão de ideias com o argumento de que inimizades podem ser o saldo (negativo). Nunca a divergência das ideias pode ser asfixiada pelo imperativo de acarinhar os que queremos bem mas surgem do lado diferente da barricada. Esse é o sobressalto maior: calar as diferenças em homenagem às sensibilidades que não se podem beliscar. A individualidade reprimida não se compadece com o método. É então que fala mais alto o verrinoso, porventura adornado numa reacção epidérmica de não se conseguir calar perante a invocação da cortesia hipócrita.

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