Não é novidade: comunicação social sedenta de sangue e lágrimas, vasculhando nas profundezas do lixo social para depurar as desgraças que mobilizam as atenções. Uma peregrinação infindável, até ao fim do mundo se preciso for, para expor desgraças humanas e os seus protagonistas. Parece um jardim zoológico, um cortejo de grotescas aberrações que se revelam aos olhos indiscretos, a toda uma audiência anestesiada pelo espectáculo feérico e ao mesmo tempo sinistro que aparece nos ecrãs.
Ontem o papel de vítima resgatada de um caminho transviado coube a Jardel. A mim, o papel de voyuer inadvertido, apanhado na tentação de ser mirone de uma desgraça alheia transportada para o espaço público. Se calhar, não tão inadvertido quanto isso. Ali estava alguém que meses antes era farrapo humano, com uma tremenda vontade de mostrar a sua reabilitação. Com uma impressionante humildade, admitindo os erros cometidos, a cocaína que o desgraçou, as más companhias, a depressão, o casamento destruído, a carreira tão brilhante desbaratada. E nós, diante da televisão, convidados a partilhar aquele exorcismo público, como se fôssemos a caução da sua recuperação.
E depois da entrevista, o que sobra? O ar pungente do jornalista a fazer as perguntas mais difíceis (foi só cocaína? Começou a consumir cocaína em Portugal, ou foi antes? Consumiu a droga na véspera dos jogos?). A sinceridade desarmante de Jardel, como se quisesse remir os tantos erros de outrora, a imagem de um homem que está reabilitado, senhor de si mesmo de que não há-de voltar a pisar as vielas sombrias onde o exaustivamente proclamado deus protector estaria ausente, regressado ao sonho que alimenta a felicidade dos que se inebriaram com os seus golos. Também haverá o céptico meio do futebol, orelhas moucas ao pedido de segunda oportunidade que Jardel fez - este meio tão senhor das suas certezas, tão pronto a sentenciar que não há remissão possível e que a idade de Jardel é o esteio tardio para a protestada recuperação.
Não sei se aquele homem aparentemente renovado, de olhos marejados, fazendo um esforço enorme para não se lavar em lágrimas ao rever os esconsos caminhos por onde andou no passado recente, não sei se não seria a imagem de muitos que, à sua maneira, teriam alguma reabilitação a empreender. Nisso, um exemplo que a televisão trouxe ao espaço público. Não mais uma aberração que diverte, noutro momento circense em que a televisão é pródiga. Todavia, o registo não melhorou. Por entre a imagem de reabilitação que Jardel quis trazer a público, como se fosse um grito lancinante de que o bom Jardel está de volta - queiram-lhe dar uma oportunidade para o provar - há o aproveitamento moralista. A mensagem subliminar: afinal todos somos capazes de subir ao pináculo da reabilitação de tudo o que queiramos retomar, tarefas hercúleas ou não. E, note-se, com a ajuda do bom deus, a palavra mais dita naqueles minutos de entrevista.
Sentimentos divididos no fim da entrevista. A humildade e a coragem de Jardel, pois poucos estariam dispostos a dar a cara em público na confissão sem peias dos erros vindos do passado. E a inquietante sensação de ter feito parte de um imenso público, toda a audiência daqueles instantes, no papel de juiz a quem era mendigada a absolvição colectiva de um Jardel que quer vir outra vez para a ribalta no que sempre soube fazer. A desconfortável sensação de ter ido no engodo, imerso numa curiosidade mórbida de vasculhar no passado de um homem, no passado que a moralista televisão queria ali sublinhar na sua cor pouco recomendável.
Queria, se pudesse, fazer o que Jardel estava ali a tentar: apagar um passado. No meu caso, queria voltar atrás no relógio: regressar ao início da entrevista a Jardel e negar a minha presença à frente da televisão. Adivinhasse - e talvez pudesse adivinhar - que o curso dos acontecimentos seria o que acabou por ser. Evitaria ser testemunha, e juiz impenitente, de um exorcismo em público.
Ontem o papel de vítima resgatada de um caminho transviado coube a Jardel. A mim, o papel de voyuer inadvertido, apanhado na tentação de ser mirone de uma desgraça alheia transportada para o espaço público. Se calhar, não tão inadvertido quanto isso. Ali estava alguém que meses antes era farrapo humano, com uma tremenda vontade de mostrar a sua reabilitação. Com uma impressionante humildade, admitindo os erros cometidos, a cocaína que o desgraçou, as más companhias, a depressão, o casamento destruído, a carreira tão brilhante desbaratada. E nós, diante da televisão, convidados a partilhar aquele exorcismo público, como se fôssemos a caução da sua recuperação.
E depois da entrevista, o que sobra? O ar pungente do jornalista a fazer as perguntas mais difíceis (foi só cocaína? Começou a consumir cocaína em Portugal, ou foi antes? Consumiu a droga na véspera dos jogos?). A sinceridade desarmante de Jardel, como se quisesse remir os tantos erros de outrora, a imagem de um homem que está reabilitado, senhor de si mesmo de que não há-de voltar a pisar as vielas sombrias onde o exaustivamente proclamado deus protector estaria ausente, regressado ao sonho que alimenta a felicidade dos que se inebriaram com os seus golos. Também haverá o céptico meio do futebol, orelhas moucas ao pedido de segunda oportunidade que Jardel fez - este meio tão senhor das suas certezas, tão pronto a sentenciar que não há remissão possível e que a idade de Jardel é o esteio tardio para a protestada recuperação.
Não sei se aquele homem aparentemente renovado, de olhos marejados, fazendo um esforço enorme para não se lavar em lágrimas ao rever os esconsos caminhos por onde andou no passado recente, não sei se não seria a imagem de muitos que, à sua maneira, teriam alguma reabilitação a empreender. Nisso, um exemplo que a televisão trouxe ao espaço público. Não mais uma aberração que diverte, noutro momento circense em que a televisão é pródiga. Todavia, o registo não melhorou. Por entre a imagem de reabilitação que Jardel quis trazer a público, como se fosse um grito lancinante de que o bom Jardel está de volta - queiram-lhe dar uma oportunidade para o provar - há o aproveitamento moralista. A mensagem subliminar: afinal todos somos capazes de subir ao pináculo da reabilitação de tudo o que queiramos retomar, tarefas hercúleas ou não. E, note-se, com a ajuda do bom deus, a palavra mais dita naqueles minutos de entrevista.
Sentimentos divididos no fim da entrevista. A humildade e a coragem de Jardel, pois poucos estariam dispostos a dar a cara em público na confissão sem peias dos erros vindos do passado. E a inquietante sensação de ter feito parte de um imenso público, toda a audiência daqueles instantes, no papel de juiz a quem era mendigada a absolvição colectiva de um Jardel que quer vir outra vez para a ribalta no que sempre soube fazer. A desconfortável sensação de ter ido no engodo, imerso numa curiosidade mórbida de vasculhar no passado de um homem, no passado que a moralista televisão queria ali sublinhar na sua cor pouco recomendável.
Queria, se pudesse, fazer o que Jardel estava ali a tentar: apagar um passado. No meu caso, queria voltar atrás no relógio: regressar ao início da entrevista a Jardel e negar a minha presença à frente da televisão. Adivinhasse - e talvez pudesse adivinhar - que o curso dos acontecimentos seria o que acabou por ser. Evitaria ser testemunha, e juiz impenitente, de um exorcismo em público.
Sem comentários:
Enviar um comentário