Há tempos, fez furor o decote arrojado da chanceler alemã, numa qualquer cerimónia oficial realizada à noite: um arejado decote, a permitir a respiração cutânea de vastas partes do busto que costumam andar cuidadosamente escondidas em pessoas da sua importância. Por falta de hábito, que na política – e mais quando os políticos ganham eleições e passam a representar o povo – a seriedade é ponto de honra. E como sérias pessoas que são, os representantes de todos nós devem pautar a conduta pelo recato, evitar declarações bombásticas que rompam com a modorra estabelecida, não terem pecadilhos que entrem em rota de colisão com os “bons hábitos” consagrados pela maioria. Devem ser sóbrios na vestimenta. Tudo para não causarem má impressão na multidão que representam. É que com a má impressão pode vir atrelada a desconfiança que, como se sabe, não dá votos e impede a recondução no cargo.
Merkel mostrou ousadia. Desviou-se de tradições bafientas e pôs a Alemanha a perorar sobre o decote que deixou à mostra as sedutoras curvas que insinuam o peito mal escondido. O peito da mulher que tem nas mãos os destinos da grande Alemanha. Fosse um país de tradições católicas e teríamos mais escândalo a escorrer das bocas pudicas dos conservadores de serviço, sempre diligentes no frete à igreja onde as suas consciências militam – já para não falar da pesporrência dos porta-vozes da própria igreja quando opinam sobre comportamentos alheios que esbarram nos padrões que ela fixa.
Ainda por cima, a audácia do traje de Angela Merkel deve ter causado moléstias nas esquerdas, sempre com a mania do monopólio da antítese das convenções estabelecidas, sempre convencidas de serem penhores das vanguardas. Não foi nenhuma actriz política vinda das esquerdas que teve o atrevimento de furar as convenções ao apresentar-se com aquele decote. E talvez por isso das esquerdas tenha soado um coro de protestos contra a insolência (protestam elas) da chanceler alemã. Um coro de protestos que é a auto-denúncia das esquerdas, afinal tão moralistas como as direitas conservadoras e arreigadas aos dogmas da religião. Lá no fundo, não há diferenças entre as duas modalidades de moralismo.
Eu diria que o gesto de Merkel foi uma lufada de ar fresco – literalmente – no cinzentismo militante dos políticos. Não vou dizer que eles surjam amiúde envergando folclóricas camisas, ou elas trajando aqueles andrajos que ficaram celebrizados no Maio de 68 ou no Woodstock – as túnicas floridas e largas que servem para esconder adiposidades irrecusáveis. Isto para os meus padrões estéticos, que são apenas os meus. Podiam, ao menos, desprender-se da maneira tão ensossa de se apresentarem em público. Eles sempre com fatos escuros, camisas descoloridas, gravatas monocromáticas que compõem um conjunto onde apenas se destaca a monotonia. E elas também no insípido tailleur senhoril, com a malinha a preceito, muito Maria de Belém (a antiga ministra da saúde socialista).
Tenho para mim que toda esta monotonia de vestes oficiais, como se fosse o fardamento obrigatório em que suas excelências ficam comprometidas ao alcançarem o tão sério papel de representantes do povo, é uma artimanha para manter a populaça dependente de uma também monótona existência. Assim passamos ao de leve, de mansinho, adormecidos pela monotonia das personagens incapazes de tocarem no carisma. Para que tudo seja feito com a nossa complacência, afinal o produto da prostração que nos é propositadamente inoculada.
Não sei se foi espontâneo, ou se foi um acto de calculismo: a chanceler alemã, assim tão decotada, foi muito mais Angela e menos Merkel. Um decote desvelando o busto que servia de regaço onde toda a Alemanha se deitava. Discretamente, uma bomba sexual, ainda que não haja nada na senhora que me peça água. A prova como pequenos gestos, discretos sinais, fazem mais pela tão sagrada imagem de um político do que o espalhafato, a espectacularidade imberbe dos galanteadores fora de tempo como Sarkozy ou Berlusconi.
Há o reverso. Se Merkel despertou um inesperado exibicionismo, não se imagina outras personagens (masculinas e, sobretudo no que me diz respeito, femininas) a ficarem tão bem em semelhante retrato. A fealdade exige o recato, a discreta e monótona vestimenta a esconder a feiura corporal. Para essas – e, olhando à arena política caseira, tantas há entre a multidão de senhoris socialistas – o melhor é que continuem assexuadas personagens. Como se lhes fosse aconselhado, simbolicamente, uma burka a cobri-las de uma ponta à outra.
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