As histórias de praxes académicas obedecem a sazonalidade. Costumam acontecer no início de um ano lectivo, quando os “veteranos” encabeçam a animalidade a que alguns adoradores do ritual, ensaiando uma erudição de pacotilha, chamam “socialização dos caloiros”. Desta vez foi quase no fim do ano lectivo que coincidiram duas notícias que colocaram o assunto fora do seu calendário natural. Primeiro, um “veterano” da Universidade do Minho decidiu tomar as rédeas de uma caloira e confundiu a “praxe” com o apaziguamento das hormonas aos saltos. Resultado: tentativa de violação. Logo a seguir uma decisão corajosa de um tribunal, que condenou sete energúmenos do Instituto Superior de Santarém por terem tido a generosidade de “praxar” uma caloira com excrementos de vaca.
O que são as praxes? São rituais, com o seu perfume tão atávico. Escondidas na retórica das “tradições” – e quem as invoca cobre-se com a pretensa autoridade moral da intangibilidade das tradições, ou perdemos o lastro que vem de trás, o legado dos antepassados. Não interessa interrogar se essas tradições fazem sentido, se as praxes a imberbes caloiros não são a expressão de humilhações absurdas, um olhar retrógrado que se recusa ao arejamento mental. Paradoxal: uma juventude mergulhada num impenitente conservadorismo, a mesma juventude que reclama para si um qualquer modismo de vanguarda, só porque são os mais novos – como se serem os mais novos seja a caução imediata para o arrebatamento do modismo.
As praxes são a brutalidade que cresce de intensidade à medida que os praxados de hoje são os que praxam amanhã, sempre na lógica de quem tem que ser mais atroz, humilhar mais ainda do que foi humilhado quando lhe tocou na carne a ternurenta prática da “socialização académica”. Como o álcool corre e rodos entre os episódios de praxe, por vezes o discernimento foge do ponto de mira e o que sobra pertence ao domínio da mais pura animalidade.
As praxes são uma linguagem codificada que abençoa uma hierarquização militarista e bafienta. Na hierarquia das praxes quem reina são os “veteranos”: quanto mais prolongado for o percurso académico destas criaturas, maiores as benesses no império das praxes. São eles os senhores, a quem todas as alas se abrem e todos os privilégios são devidos. Eu entendo o estatuto: afinal as praxes são uma compensação aos desvalidos das pautas de avaliação, aos infortunados por sucessivos chumbos. E como tantas vezes reprovam, os seus traumas têm que ser compensados com um estatuto privilegiado nas praxes. Justiça social em acção. Ou isso, ou entender por que se eternizam nos bancos da universidade: por entre a preguiça, caldeada por um manto de ignorância, sabe-lhes bem, uma vez na vida que seja, chamarem a si tantas prebendas.
Se o resto não fosse suficiente para execrar as atávicas praxes, só o militarismo caduco que entroniza os medíocres, os “veteranos” que encimam a organização, diria tudo acerca do ritual. É o prémio maior à mediocridade impante. Ano atrás de ano, uma engrenagem oleada impede que se ponha em causa a “tradição” da praxe. Quem invocar objecção de consciência e se recusar a ser gado fácil para gáudio da turba adoradora do ritual, merece o desdém da turba, um lugar ostracizado por ousar ser dissidente da acefalia geral. Admite-se que alguns não tenham coragem de invocar a objecção de consciência com o temor de serem marginalizados, alvo da chacota dos outros, porventura ficarem de fora da tal “socialização académica” que não passa de uma treta.
De humilhação em humilhação, com toques de militarismo coroado na forma de genuflexões aos reis do ritual, os veteranos, uma escalada interminável. As criaturas acham-se possuídas de uma criatividade inigualável aos inventarem novos sacrifícios aos incautos que se oferecem diante do ritual sacrificial que tanta algazarra motiva. Já houve quem fosse obrigado a simular assalto a um banco. Já houve quem tivesse que mergulhar a cabeça num balde de excrementos de vaca. Já houve quem tivesse que simular actos sexuais com os veteranos – porventura estes, coitados, a única vez que estiverem perto de tal acto. Já houve quem tivesse sido vítima de assédio sexual que terá terminado em tentativa de violação (e quantas vezes a violação não se terá consumado, ficando no atormentado segredo das vítimas mergulhadas na vergonha?). O que mais faltará para que esta aleivosia termine?
(Registo de interesses final: como não fui vítima de praxe alguma quando entrei na universidade, este texto não é produto de ressentimento.)
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