Finalmente, uma vocação para os valorosos “lobos”: em vez das repetidas derrotas no rugby, cantadores oficiais do hino, convidados que foram para o fazer nas cerimónias oficiais do 10 de Junho. Adivinha-se uma carreira musical para os lobitos?
Convém recordar: aquilo tinha sido um feito – a qualificação para a fase final do campeonato mundial de rugby, pela primeira vez alcançada. Contaram-nos histórias: que eram a única equipa de amadores. E foram-nos preparando para o que vinha a seguir: um aluvião de clamorosas derrotas contra os trutas que iam apanhar pelo caminho. Porque, enfatizavam-no sem descanso, eles eram os amadores em compita com os profissionais. Perder por poucos era autêntica vitória. Perder por menos de cem pontos com os neozelandeses teria mais significado que o triunfo destes no campeonato. E assim fomos reeducados para uma nova noção de feito desportivo, uma reinvenção do conceito que o conciliava com a colecção de derrotas.
Temendo que a populaça, entre a dormência para o rugby (afinal o rugby não é o futebol) e o olhar de soslaio para as sucessivas derrotas, esmorecesse nos amores pelos “lobos”, puxaram lustro ao nacionalismo e deram uma lição de bravura patriótica ao entoarem o hino com sentida exaltação. Diria: bravura patrioteira. Contudo, as massas ficaram embevecidas pelo arrebatamento com que aqueles paquidermes cantavam o hino, as gargantas gritando tanto o hino que decerto se esgotavam as energias para o jogo que viria a seguir ao desempenho dos tenores em pleno relvado. E eis que uma selecção de gentios entrava nos anais não pelas medalhas que são espúrio motivo de contentamento nacional.
Entretanto, os publicitários descobriram em alguns dos intrépidos intérpretes do hino valorosas personagens para campanhas de publicidade. Um deles, não se sabe se por ser cunhado do presidente da Comissão Europeia, desatou a dar a cara por sumos e automóveis. Curiosa, a imagem: ou de como gente que se destacou tanto pelas derrotas como pelo empenhado entoar do hino nacional passou a ser uma imagem que, ao que parece, vende produtos. A confirmar-se, ou somos tontos inebriados por falhados, ou temos uma generosa transigência com os desamparados das derrotas. Porventura a atracção colectiva pelo abismo, a queda pelas derrotas de uma gente esquizofrénica que é adoradora dos vencidos – talvez por não se conseguir desligar dessa condição, a sequela da extinção do império que glorificam as páginas dos manuais de História na escola secundária.
Soube-se agora: com o alto patrocínio de sua excelência o senhor presidente da república, os lobitos terão papel de mordomos artísticos nas cerimónias desse grandioso acto de catarse colectiva que é o 10 de Junho, dia de Portugal, de Camões e da Diáspora. Serão eles a cantar o hino nacional. Não virão com os trajes que envergam na véspera de um jogo de rugby: espera-se que se dispam das selváticas vestes e surjam apessoados, aperaltados com fatiota a preceito. Uma sugestão: os nós das gravatas não muito apertados, pois a jugular precisa de espaço para muito sangue fluir em alimento do fôlego generoso que se exige para gritarem o hino nacional a pulmões inteiros.
Ora se o momento é de exaltação da pertença nacional, um episódio ímpar de patriotismo no calendário anual, bem terá andado o presidente da república na lembrança dos bravos rapazes que ficaram conhecidos pelo pundonor com que entoavam o hino. É de decisões destas que se compõe a excelência de um mandato presidencial. A solenidade da ocasião não será boa conselheira de um dos gestos que enterneceu as massas: os lobitos abraçados enquanto gritavam o hino, insinuando o cimento da nacionalidade naquele amplexo tão forte que, aposto, deixava as primeiras nódoas negras nos ombros dos colegas. Em 10 de Junho, os lobitos apenas alinhados como se fossem os meninos da quarta classe em dia de visita do ministro ou do edil. Aconselha-se que o palanque onde vão actuar esteja a uma distância larga das personalidades. Senão, a ventania soprada com a encolerizada cantoria do hino virá despentear senhoras que passaram horas no cabeleireiro e descompor gravatas ajustadas ao milímetro dos exemplos da nação.
Às vezes as pessoas descobrem a sua vocação, uma inesperada vocação, diferente daquela que julgavam ser a sua. Passarão os lobitos a embelezar actos oficiais onde seja obrigatório o hino – quase como cantadores oficiais do hino? E, de tão carregada agenda de actuações, nem terão tempo para se dedicarem ao rugby? Uma derradeira pergunta: entre ambas as hipóteses, o que se perde mais?
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