22.5.08

Altius, fortius, litius – ou para que serve o doping?


Há cada vez mais atletas apanhados na contramão do doping. Certas modalidades são mais pródigas: ciclismo, atletismo, halterofilismo, futebol. E até amadores que cultivam o físico se deixam aliciar por suplementos, pílulas e quejandos, só para melhorarem o desempenho físico, só para irem mais alto, para serem mais fortes, para chegarem mais longe do que o corpo permitiria. Eis o ideal olímpico – altius, fortius, litius. A meta suprema para atletas de alta competição e para amadores dependentes do exercício físico.

O avanço do conhecimento, de mão dada com engenheiros químicos, é o sinal dos tempos, o sinal da subversão do ideal olímpico. O ideal não deixou de ser altius, fortius, litius. O que mudou foi a forma para lá chegar. Já não contam os limites do corpo, ou a maneira como esses limites são maximizados através do treino. O sinal dos tempos está num chavão popularizado para desgraça dos que cultivam a ética impoluta: são os fins que interessam e não os meios utilizados para os atingir. Na às vezes selvática competição desportiva, há quem não olhe a meios para derrotar a concorrência. E se os atributos não chegam para vingar na competição, a batota do doping é a alavanca para falsear os resultados.

Tudo isto vem agravado com um estigma: os que triunfam não são os melhores, são os que souberam ingerir substâncias proibidas que empurram o limiar das capacidades físicas para além do que é suportado por um corpo humano. E há outra agravante: no meio do clima de suspeição, em que todos os desportistas desconfiam uns dos outros, quem arrecada os louros não beneficia de aplauso popular. Só é credor de desconfiança generalizada. As pessoas perguntam-se: terá o campeão de hoje – como todos os campeões de ontem – escorregado para o terreno do doping? Chega-se a um ponto em que os vencedores das competições deportivas onde o doping é useiro e vezeiro perderam o reconhecimento público. É o preço que pagam por terem ousado na trapaça das substâncias que alteram o desempenho corporal, levando-os a patamares sobre-humanos.

Não é comparável o logro provocado por desportistas de alta competição e a trapaça em que incorrem os amadores que cultivam obsessivamente o desempenho físico. Só há comparação nos casos em que uns e outros se socorrem de substâncias dopantes. A diferença está na proibição do doping no desporto profissional, já que ninguém pode proibir um amador de se pejar com anabolizantes e similares. E se digo que não há comparação quando uns e outros escorregam para a batota do doping, a diferença fixa-se na fraude que vicia os resultados de uma competição desportiva, elevando ao pódio os que mais martelaram a tecla da trapaça em detrimento dos que apenas aproveitaram os seus dotes físicos. Entre os amadores que são cultores do exercício físico, o preço do logro das substâncias que levam o corpo além dos limites restringe-se à esfera individual, não se extravasa para os outros.

Só que a batota, mesmo nos amadores que competem apenas com os seus limites físicos, é indeclinável. Esta gente não se satisfaz em atingir os limites do corpo. Quando sentem que chegaram ao limiar das capacidades físicas, elevam a fasquia recorrendo às matérias que falsificam os limites do corpo. No fundo, fazem batota com o seu próprio corpo, consigo mesmos. É o problema da ambição humana desmedida. É que os limites podem sempre alcançar mais longe, mais forte, mais alto. O que exige mais anabolizantes e similares, ou seja, que os limites atingidos pelo corpo estejam além das suas capacidades inatas. Nesta altura, os amadores tornam-se mastodontes burilados em laboratório, à custa de tantos químicos que os levam, orgulhosamente, a clamar que conseguiram açambarcar o ideal olímpico. O que interessa que o corpo venha a pagar um preço elevado, pois aquelas substâncias têm efeitos colaterais (colapsos cardíacos súbitos, perda de capacidades cerebrais, até a impotência sexual)?

E, sim, é um sinal dos tempos: ludibriar os outros está na ordem do dia. Uma mistura de ambição ilimitada com o convencimento de que todos os meios servem para a satisfação dos fins – ou na versão indígena, o aclamado “chico-espertismo” que ensina que os que não pisam esse terreno são os ingénuos que ficam para trás na selvática competição em que se tornou a convivência em sociedade. A batota vulgarizou-se. De tal forma que quem não vinga no palco da batota é que fica irremediavelmente para trás, derrotado, humilhado por não ter tido a arte de ser mais trapaceiro que os concorrentes.

Que não haja equívocos: mantenho-me nos antípodas de qualquer moralismo. Este texto não é um arremedo moralista. Só a constatação da realidade.

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