À falta de substância, a aposta de todo o património na imagem. Numa imagem. Governa-se através de sinais, de trejeitos que, acredita-se, prendem a audiência num encantamento pueril. Não é só infantil quem cai no engodo. A infantilidade maior é de quem patrocina o estratagema. A incapacidade obriga a desviar as atenções para o acessório. A imagem, o culto da imagem – de mão dada com um certo culto de personalidade que é sempre enjoativo – é um assalto à nossa inteligência.
Ora, somos destinatários de uma enxurrada de sinais codificados acerca da imagem cirurgicamente construída deste primeiro-ministro. Aprendemos que foi o salvador das desgraças semeadas pelos antecessores. Somos todos os dias ensinados, pela propaganda diligente que se insinua na comunicação social amestrada, que o homem é um reformador indomável. Com ele, a Lusitânia terá por fim entrado nos eixos. Ele é a ruptura com um passado envergonhado, o passado das oportunidades desperdiçadas. Não por acaso, repete à exaustão que “se fez história” a cada iniciativa revelada. Não faltará muito para termos murais pintados por jotinhas socialistas em que a personagem é retratada com um olhar altivo, erguendo-se no firmamento de onde nasce um sol radioso – o sol tão radioso entreaberto pelos seus dedos mágicos, a afortunada governação que nos presenteia. Se o fruto for espremido, pouco sumarento se revela o produto desta governação. Contudo, a imagem cirúrgica desnuda o contrário. Porventura, muito da fátua imagem que se pretende substituir à ineptidão.
Aos teimosos críticos que ousam não admitir – ou não conseguem perceber – a proficiência do timoneiro, a tarefa de desmontar os alicerces da infausta personagem fica facilitada. Basta destruir a imagem que invade os olhos, todos os dias, tão bem estudada que parece inexpugnável, sem brechas por onde se possa arremeter. Todavia, não há construções humanas perfeitas. A personagem e os cultores da sua imagem deviam sabê-lo.
No último périplo pelo estrangeiro estava agendado o habitual jogging pelas ruas da capital do país visitado. Já faz parte do ritual das viagens ao estrangeiro: um primeiro-ministro atleta, que faz as invejas dos colegas anfitriões que confessam não ter tempo, ou disposição, para cultivar o físico. Diria, um ritual que tem algo de supersticioso, pois não há digressão pelo estrangeiro que não contemple o convite à obediente e ingénua comunicação social para a corrida da praxe, não interessa que tempo faça, calor ou frio gélido, não interessa que as ruas por onde as pernas se arrastam em passada lenta sejam um mostruário de poluição (Pequim, Caracas) que desaconselha a prática do desporto ao ar livre. Tão ritual que o jogging é marcado como se de uma conferência de imprensa se tratasse. Tudo tão bem estudado. Tudo em compasso com a imagem que o herói gosta de cultivar de si mesmo: gaba-se de correr sete quilómetros numa hora.
É nas palavras que muitas vezes vem atrelada a mentira. E na própria imagem revelada, o complemento à mentira rotunda. Foi divulgada uma fotografia da personagem em pleno jogging que sela a mentira total que a envolve, a negação da imagem cultivada do homem imaculadamente saudável, que cuida do físico. O exemplo para todos nós, sobretudo para os que teimam numa sedentária forma de vida que esconde nas esquinas da vida o infortúnio de maleitas súbitas que até podem ceifar a vida. A fotografia deixa à mostra uma pança mal disfarçada, uns peitorais onde as adiposidades quase reclamam um soutien para as amparar. Para quem não esteja distraído pela propaganda que oleia a ostensiva imagem, ela, a imagem, sela a sua própria negação. Se o indivíduo for o praticante regular de jogging como nos querem convencer, como se explica a barriga arredondada que se insinua no fundo da t-shirt e aqueles peitorais nada escorreitos?
Sempre desconfiei da patranha. Em entrevista passada, o infalível primeiro-ministro, em exercício de revelação da intimidade que interessava mostrar, confessou que consegue correr sete quilómetros numa hora. Eu, que não sou atleta, faço nove quilómetros em trinta e seis minutos. Das três, uma: ou o timoneiro tem uma noção errada das medidas (da distância, ou do tempo, ou de ambos), ou é preguiçoso na passada lânguida que o transporta pelo suposto jogging, ou é mentiroso. Tenho para mim que a fotografia é reveladora da elevada probabilidade da solução se encontrar na derradeira hipótese.
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