Dos manuais: “a lei é geral e abstracta”. E nem precisamos de mergulhar nos calhamaços universitários, que as sebentas do ensino secundário contemplam definição semelhante para formatação dos adolescentes alunos. A lei é geral, convém recordar, porque se aplica a toda a gente, desde que toda a gente preencha as condições para ser destinatário da lei. E é abstracta: que é como que diz, é cega, não olha à condição ou aos privilégios de quem se julga pairar sobre a lei, no pretexto para dela se considerar desobrigado.
Gabamo-nos: somos um Estado de direito, chancela civilizacional que nos coloca no altar do primeiro mundo. Num Estado de direito fala mais alto o império da lei. Da lei geral e abstracta. Todavia, há muitos descarrilamentos da lei, que nem sempre é geral e abstracta. Há muitos fundilhos na lei para que excelências várias possam adejar sobre ela, dispensados do seu respeito. Como se a lei fosse feita para ser respeitada apenas pelos súbditos. Ela é feita pelos suseranos, que logo a seguir se colocam num estatuto especial, acima da lei que fazem para os súbditos obedecerem. O problema, insanável, é que a lei deixa de ser geral e abstracta. Não passa de um enunciado, retórica, apressadamente desmentido pela prática.
O contexto: estão a dar brado as baforadas de fumo – com origem em tabaco – libertadas pelo primeiro-ministro e vários elementos da comitiva a bordo do avião que os levou até Caracas. Primeiro às escondidas do resto da comitiva, no resguardo de uma cortina que separava sua excelência mais o séquito de assessores; depois às claras, num desavergonhado escancaramento do fumo dentro de um avião, atropelando normas internacionais que o proibem. E, não houvesse essas normas, falaria mais alto o imperativo lógico que impediria qualquer membro deste governo de sacar de um cigarro dentro de avião: é que foi este governo que assumiu a paternidade de uma lei tão restritiva para os fumadores. Apetece glosar Frei Tomás: uma coisa é a pregação, cheia de tiques que tresandam a uma bolorenta moralidade, outra diferente é o que se faz.
Também me incomoda a forma moralista como a notícia foi dada a conhecer. Vou descontar a farsa moralista, porque o que interessa aqui é condenar a prosápia de suas excelências que têm a incumbência de nos governar, a prosápia de quem faz as leis para serem cumpridas pelos outros. Quem devia dar o exemplo escapa à tarefa. Se eu fosse fumador, não via neste episódio a porta entreaberta para mandar às malvas a apertada lei que cerca os fumadores por todos os lados? E se todos os fumadores, em uníssono, protestassem contra a excepção chamada a si pelo primeiro-ministro e comitiva e se recusassem a cumprir a lei que proibe o fumo em locais fechados? Assim como assim, o exemplo não vem de cima?
Estamos habituados a sucessivos casos semelhantes: por uma ou outra razão, inventando mil e um expedientes, os governantes e os figurões acabam embrulhados num estatuto privilegiado que os subtrai da condição de destinatários de certas leis. Já se sabia que o ministro da economia se passeia pelas auto-estradas do país a 220 quilómetros/hora sem que a polícia o possa autuar. A mesma personagem continua a dar o seu contributo para a confirmação de que, no terreno da prática, a lei não é assim tão geral e abstracta quanto ensinado nas escolas e universidades: acompanhou o chefe no fumo bolsado durante o voo para Caracas. Somos um Estado de direito até o ponto em que os vícios privados dos mandantes, ou as suas conveniências, oferecem poderosos argumentos para uma brecha na lei, só para que suas excelências sejam autorizadas ao desrespeito sem lugar a punição. Essa tomba apenas sobre os súbditos.
Adivinho a reacção ofendida do timoneiro: outra vez a ser perseguido pela comunicação social, que noticia detalhes quando o que interessa são os altos negócios que ele vai celebrar com o seu amigo presidente da Venezuela (e estamos conversados quanto ao calibre das companhias. Lá está: “diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”…). Estará equivocado: não se trata de insignificâncias. É o tão importante reconhecimento de que há leis que comportam excepções só ao alcance dos figurões. Nessa altura, uma interrogação irrecusável: oito horas de voo, tanto tempo, o pretexto para a excepção que admite o fumo dentro de um avião? Se a pessoa que é primeiro-ministro for de férias como anónimo passageiro de um voo comercial, o que lhe acontece se não conseguir reprimir o vício do fumo?
Creio ter descoberto a explicação: o stress da governação, mais o voo de longo curso, explicam a necessidade do tabaco. Uma válvula de escape para tão importantes personagens justifica a outra válvula de escape, a que os põe a coberto das leis. Das leis que só se aplicam aos comuns mortais, não a suas excelências. A pergunta derradeira: a isto não se chama despotismo?
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