6.5.08

Da monarquia circense


A notícia era esta: “reis da Suécia atraem uma multidão”. Suas altezas estão de visita a Portugal. Algures terão sido agraciados com uma imensa mole humana de nativos que lhes foram prestar vassalagem. Eu tenho outra interpretação: o povo gosta de aberrações, quanto mais não seja para se certificar que não faz parte do leque das aberrações. Em tempos que se convencionou apelidar de “pós-modernos”, até que ponto uma monarquia, com as suas características anacrónicas, não é uma aberração?

O povo acampa nas imediações do local onde suas altezas hão-de colocar os pés tão nobres. A curiosidade pelas coisas raras mobiliza as massas. Faz-me lembrar as gentes que se acercam do acampamento onde está um circo, com as roulottes e as jaulas dos animais espalhados em exposição para saciar curiosidade alheia. E como o povo se delicia com o bulício circense, atraído pela nómada maneira de viver dos artistas que fizeram tantas delícias quando o povo era criança. Detém-se diante das jaulas onde estão aprisionadas as infelizes feras. E olha, extasiado, para os leões e os macacos e os ursos: não é todos os dias que animais tão exóticos se expõem à vista curiosa das gentes.

É assim com os reis. Os reis que ainda preenchem parte de um imaginário de grandeza nacional, da grandeza apregoada pelas narrativas históricas. O mesmo povo que vota à esquerda – há que não o esquecer: só as esquerdas é que protegem os desvalidos – e que se deixa enternecer pela feérica realeza estrangeira de visita à republicana portugalidade. As pessoas ficam inebriadas com a cintilante aura da realeza e, num impulso irreprimível, prestam sentida homenagem aos reis e rainhas que agraciam com a sua presença a humidade portugalidade. E que as pessoas ainda vivem presas à imagem da realeza de um conto de fadas, como se a realeza tivesse mesmo o sangue azul em que os monárquicos religiosamente acreditam.

Eu acho que é tudo diferente. Ainda que haja muito povo “atraído” pela sumptuosidade das monarquias europeias que ainda o são (monarquias; porém, inanes sumptuosidades), debaixo das aparências vem o verdadeiro sentir. A indomável atracção pelas aberrações é o que leva a maralha a enamorar-se pelo circo. As monarquias são um circo à sua maneira: um espólio onde se resguarda a retórica de um estatuto sobre-humano, o que é devido aos reis e rainhas e respectiva prole. Eles são diferentes, como se tivessem carne e sangue feitos de uma essência diferente. Todavia, a realeza também adoece, também tem os seus pecadilhos, também fenece. Afinal o tecto quase divino onde a realeza acama é uma falácia sem fundo.

Descontam-se da análise as dondocas que tecem a sua vida à volta das fantasias alimentadas pela imprensa cor-de-rosa. Essa imprensa adora registar os passos, todos os passos, que os membros das realezas europeias dão. É interessante notar o esforço – combinado entre essa imprensa e os operadores de relações públicas das casas reais? – para mostrar a face humana dos reis e príncipes. Uma certa banalização da realeza, para a tornar mais próxima do cidadão comum, que ainda assim não deixa de ser um “súbdito”. (E ainda faz sentido olhar para alguém como súbdito de outrem?) Esta campanha de relações públicas ensaia a quadratura do círculo: enquanto se esforça por aproximar a realeza do comum dos mortais, fazendo parecer os membros da casa real com pessoas de carne e osso, ao mesmo tempo mantém-se intocável o trono e a coroa que dão continuidade à imagética tão anacrónica da realeza.

É uma sensação estranha: por um lado, reis e príncipes mostram a face humana, querem ser quase iguais aos súbditos. Também eles resvalam para os pecados tão humanos, as fraquezas, vícios, hobbies, o lado mundano que todas as pessoas têm – até os que se julgam imunes ao mundano. Pelo lado contrário teima a pose majestosa da realeza. Têm sempre dotes especiais: são os melhores por onde passam, desde os bancos da escola aos bancos da universidade, passando pela tropa onde dão o melhor exemplo aos varões que hão-de prestar serviço militar. Ninguém questiona por que são sempre a nata da nata. Desconfio de tamanha proficiência: suspeito que os serviços secretos se intrometem na gestão escolar, nos serviços pedagógicos das universidades, nas casernas onde convivem com o generalato, só para subtrair as influências que se jogam a favor dos príncipes que são tão magníficos nas suas capacidades intelectuais. Assim como assim, os súbditos têm que ficar sossegados: no futuro hão-de ser governados por um predestinado.

Tudo isto é circo, um circo faustoso. Com o condão de anestesiar o povo, boquiaberto com a sumptuosa corte que adeja a realeza, na obrigatória genuflexão às altezas que passam revista aos súbditos. Mesmo aos súbditos que o não são.

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