13.5.08

O anjo não tinha asas


Quando a manhã brumosa se tecia no seu alvor, havia esperança. Como se fossem as gotículas esparsas do orvalho matinal nos dias tardios de primavera. As gotículas a aspergirem a sua frescura nas sequiosas plantas, elas abrindo-se em contemplativo colo ao céu donde tombavam as refrescantes gotas. Essa era a essência da esperança dos eternos optimistas, dobrando cada esquina sempre convencidos do encontro marcado com um anjo protector – um anjo semeando as pétalas perfumadas de uma existência enfim colorida pelas exuberantes tonalidades de um prometido arco-íris.

Era de querubins que esperava, a cada dia que passava. E nem interessava que no restolho do dia, já quando a noite se fazia alta, a promessa de um anjo generoso estalasse crua na boca insaciável. Todos os dias a boca se tornava mais insaciável, pelo alimento prometido por um anjo envolto na sua alvura que teimava em alimentar apenas a fome num corpo faminto. Nem os dias sucessivos de decepção estorvavam a eterna esperança. Havia ali convencimento de que um dia, um dia qualquer, um exclusivo querubim estaria a bater à porta, portador das boas novas.

Todas as noites deitava-se com a sua ilusão. Imaginava o mágico momento da visitação do anjo que seria só seu. A alvura cintilante, as faces rosadas de uma meninice imersa na sua pureza, a aura selando uma bondade infinita. Em seu redor, uma frescura revigorante a contagiar-se. Dava de barato as propriedades curativas do anjo diante de si. Um singelo toque com a sua mão gélida, o bálsamo para a existência prometida: tudo o que até então fôra malsão seria esquecido, as íngremes ladeiras penhores de tanto sacrifício apenas um trejeito da memória. Não haveria então lugar ao ressentimento que consome as forças, o largo ressentimento que desvia da bondade. O anjo das asas farfalhudas seria o pórtico por onde os olhos apenas conseguiriam ver uma luz intensa, o sol constante a depurar o chão áspero já não feito de espinhos ensanguentando os pés.

Mas tudo isso era na véspera do sono – ou no limiar do sono, entrando já nos sonhos. Porventura os sonhos que traduziam a realidade sem mercê de se fazer apurada. Os dias eram uma procissão interminável de esperança adiada. Os dias, os meses, os anos, numa sequência sem fim, e a esperança apenas isso mesmo: um roteiro sem destino, todos os projectos esboroados à medida que as mãos tentavam capturar o vento. As palavras pela metade, o horizonte teimosamente toldado por um nevoeiro que tingia a vista com a escassez, um rombo em esperanças fermentadas desde tempos já imemoriais. Teimavam os anjos, um anjo que fosse, em demorar-se na sua ausência. Às vezes deixava-se derrotar pela teimosia do infortúnio. Era quando se interrogava se haveria mesmo um anjo a si destinado.

Certo dia, as esperanças irromperam com a refulgência de um raio. Tudo troou, como se fosse um tremor de terra a agitar o seu mundo particular. Sem que esperasse – e sabia-o que assim seria, inesperado –, diante de si um anjo. A alvura tão intensa que quase cegava, a idealização dos tantos sonhos que retratavam o momento ansiado. Um anjo pequenino, pois afinal os anjos são personificações de inocentes crianças que espelham na sua inocência a tremenda bondade que transfigura a vida de quem é bafejado com a sua visita. Encheu-se de contentamento, um súbito torpor apoderando-se. Inerte, sem reacção, à espera de um gesto magnânimo do querubim diante de si. As suas preces atendidas – as orações que dariam um novelo suficiente para preencher as páginas de fartos livros.

Já se preparava para olhar ao céu e agradecer aos deuses o acto de generosidade com que tinha sido agraciado, enfim o seu anjo exclusivo preparado para o acto transfigurativo que haveria de ser a varinha de condão, a inflexão na vida tristonha, o sedimento em falta para a existência cheia. Foi então que reparou no anjo que mostrava uma entristecida face, uma lágrima escorrendo pelas delicadas curvas do rosto. Os olhos marejados impediam a fala. O anjo na sua penitência parecia lamentar-se por não poder cumprir a promessa de semear uma existência preenchida ao seu protegido. Só então percebeu: o anjo, o anjo não tinha asas.


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