“Os que vivem intensamente não têm medo de morrer”, Anaïs Nin.
A consumição do ateísmo é a sementeira para a perplexidade da morte. Um tremendo buraco negro no dobrar da vida terminal. Não há nada para além do fio que divide a vida da morte. A ausência de fé impede a crença da vida noutra dimensão. Há, talvez, um apego excessivo à materialidade do corpo. O corpo extingue-se e nada sobra, menos as memórias nas pessoas que foram queridas. Mesmo essas recordações se dissipam com tempo que prossegue, tão inexorável a esse esquecimento. E há, talvez também, as masmorras de uma racionalidade que é o paredão onde esbarra qualquer fé, o paredão que afugenta todas as divindades que se candidatam a aspergir a intensa luminosidade prometida da fé que propagam.
A não existência quando a vida se dilui em nada é isso mesmo – um agoniante nada. Resta a resignação, saber que algures virá a sentença definitiva que depõe o ponto final de uma vida. O que atormenta o ateu é o vazio que se anuncia após a lancinante despedida da vida. Se houvesse crença nos dogmas religiosos, algo – a que uns chamam alma, outros espírito – desprender-se-ia do corpo e seria a essência a perdurar na eternidade. Seria essa a existência para além da vida corpórea.
O problema do ateu é que não se consegue convencer dos dogmas religiosos. Excessivamente preso ao sentido corpóreo da existência, gostaria de acreditar que naquele instante em que as funções vitais do organismo cedessem lugar à cadavérica forma, o espírito – ou a alma, ou o seu sucedâneo – se libertariam das amarras do corpo que foi a demorada prisão, a extenuante vida terrena. Seria tão reconfortante se o ateu se convencesse que podia ser espectador das suas próprias exéquias. O momento mais elevado de exaltação egocêntrica. Poderia pairar sobre o seu funeral, testemunhar a despedida das pessoas que lhe foram queridas, observar as lágrimas vertidas em sentida homenagem. Seria a sua vez de se sentir incomodado pelo louvor póstumo, a vulgar hipocrisia que faz a sagração de uma vida quando ela já se despediu no seu leito de morte.
Só há um modo de contornar a perplexidade da morte: uma vida intensa, a capacidade para extrair todo o seu sumo. A diligência para evitar o desperdício da vida, da vida que por mais longa que seja se debate com a injustiça da brevidade, a injustiça indigna de qualquer divindade. É que a morte não precisa do meu sim, pois ela chega quando mais lhe convier. Só há um roteiro possível: fazer da vida uma bebedeira permanente, a vida como consagração da sua embriaguez. E se o corpo não acabasse por ser um obstáculo, até as horas de sono seriam dispensadas da sua função retemperadora para mais vida ser vivida.
Por tanto que a vida seja levada com intensidade ímpar, por mais arrebatamento a que a existência se entregue, há sempre tanta vida por tragar. Tanto por conhecer: tantos lugares, tantos livros, tanta música, tantas conversas que nunca chegam a ter lugar. A ingrata sensação que por mais recompensadora que a vida desfile diante dos olhos, logo a seguir a vacuidade ao perceber que muito mais haveria por decruar. E pouco adianta fazer da vida uma desenfreada correria. A metódica embriaguez da existência não é o paliativo para o dilacerante momento em que a vida se extingue. O que interessa é acreditar numa feérica imortalidade: é que todos o somos, imortais, enquanto a ceifa aviltante da morte não marca encontro connosco.
Sim, neste sentido Anaïs Nin fez a síntese: enquanto soubermos tirar toda a seiva que a existência oferece, e enquanto houver a capacidade para evitar mergulhos em precipícios desnecessários, a vida tão plena é um acto de coragem. A coragem suprema de nem sequer a morte temer. Quando ela se anunciar na sua impiedosa sentença, o comprazimento de uma existência carregada de significado. O desafio maior é esse: saber imprimir o rumo à vida que o seja de uma intensa embriaguez, uma embriaguez que habilite a sagração da vida. Nessa altura, o sentido do dever cumprido.
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