24.8.18

Colheita tardia (short stories #16)


King Biscuit Time, “I Walk the Earth”, in https://www.youtube.com/watch?v=_cdDmqvkpV4
          Sobra a insubmissão. O rastilho aceso contra o vagar que endurece o peito. As pedras calcárias emprestam a austera visibilidade ao palco. Pode-se pensar que as coisas estão adulteradas. Pode-se pensar que a mudança é o húmus dessa adulteração. Às vezes, o olhar decai nos ardis em que se consome. Essa mudança consta do almanaque que serve de tapete aos pés. Pode a claridade vir servida numa moldura baça. Pode a memória confrontar-se com remendos no tempo, já não vívida como outrora. Podem as palavras escapar entre duas linhas de texto, ou dois pensamentos não necessariamente ligados entre si. Não é grave. As rugas do tempo cuidam de tornar a mudança inteligível, para que ela não tenha a aparência de adulteração. É como se as cores do palco fossem mudadas e a luminosidade sobre ele vertida ganhasse outros contornos. O palco transfigurado, para responder ao desafio que sobre ele adeja. O corpo adapta-se – e não é verdade que somos uma espécie adaptativa? Ao longe, os vestígios da lava incandescente que desce vagarosamente os contrafortes do vulcão. Está longe, a erupção. A lava também. Sente-se um ligeiro aflorar de enxofre quando o vento se põe a preceito. Diz-se que a lava não estuga no caminho, mas também não se detém diante de nenhum obstáculo. Depois da lava fica o chão cheio de rugas. Um chão inesperadamente fértil. Nem toda a destruição é destruição em seu sentido final, determinístico. Num volte-face do enredo, haveremos de ser colheita tardia. Tardia, mas ainda colheita. São esses os frutos que contêm a doçura em estado puro. No limiar do desperdício por podridão, são esses os frutos que servem para o néctar que os deuses bebem como fonte de inspiração. Às rugas vulcânicas vão os frutos beber a sua prodigalidade. Quem disse que vir tarde é a destempo? Arrematem-se os relógios no venal logradouro de onde ser serve a sua infecundidade.

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