How To Destroy Angels, “A Drowning”, in https://www.youtube.com/watch?v=8Kc-YPqW4k0
Inventário permanente. Aberta a conta-corrente, todos os movimentos eram meticulosamente anotados. Estava convencido que o fazia para memória futura. Ou talvez fosse apenas uma prisão: os movimentos diariamente registados para não ter deles esquecimento, mas uma opressão em forma de disciplina irrecusável. Não queria admitir: tornara-se quase uma superstição. (Não admitia por desprezar as superstições – como o denotava o “quase” na afirmação anterior.) Para ele, era apenas a circunstância de ser metódico. Acreditava que a conta-corrente tinha de estar atualizada, sob pena de tudo se passar como se os acontecimentos nela lavrados não tivessem acontecido. A conta-corrente era caução do passado. Ao mesmo tempo, não se livrava de uma reprimenda a si mesmo: considerava a conta-corrente uma rotina que travava a autonomia. A dependência era tanta, que prometeu mil vezes destruir os livros da conta-corrente e mil vezes acabou a selar páginas que vinham a preceito de mais um dia findado. Tinha um medo (e nisto, sem dar conta, era tomado de assalto pelas teias vetustas da superstição): que a ausência de atualização da conta-corrente inaugurasse um abismo de onde não podia sair. Era como se o metódico inventariar em registo quotidiano garantisse mais um dia – pois era esse dia que merecia a distinção de ser inventariado na conta-corrente. Parecia que através da conta-corrente estava emaranhado num combate contra si mesmo e contra as forças da natureza. Posto nestes termos, em sistemático exercício que abria a janela de oportunidade para o dia seguinte, a conta-corrente era mais uma fábrica do futuro do que um museu do passado. Como tinha um terrível medo da morte, a conta-corrente era o pretexto para a fintar. Não ambicionava a imortalidade (estava ao corrente da sua finitude). Mas enquanto houvesse conta-corrente para lavrar, abonava o dia consecutivo. Um atrás do outro, enquanto na conta-corrente se sedimentavam páginas e páginas a eito do inventário de uma existência. De uma existência que julgava sublime.
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