22.8.18

Ritual (short stories #14)


Altin Gün, “Goca Dünia” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=FyQ_5uLyFMo
          O pé direito que é o primeiro a sentir o chão depois do sono. O pé direito que tem precedência em qualquer entrada. Não passar sob uma escada emparelhada. Ouvir sempre a mesma música na véspera de eventos significativos. Envergar a mesma roupa para efeitos da presença nesses eventos. Nunca empregar determinadas palavras, apenas porque são palavras com as quais existe uma embirração sem explicação. Fugir do treze, que dizem que o número do azar (mesmo sem ter razões de queixa do treze, em grande parte por dele fugir a sete pés). Evitar gatos pretos. Colecionar todos os trevos de quatro folhas que venham ao conhecimento, até que já não seja possível extraí-los da senescência própria depois de serem arrancados pela raiz. Militar contra o caos da manhã, por conviver mal com a alvorada e o mau-feitio ser idioma dominante. Ler os jornais de trás para a frente. Fazer a corte a um conjunto de objetos de colheita especial, por terem ficado lavrados no livro do tempo como objetos com correspondência a episódios memoráveis. Não escarnecer (nem em privado) de coisas sérias. Não admitir o ateísmo, que deus pode existir e, vigilante como apregoam ser, descerá a mão irada da vingança. Não bater as claras em castelo em movimentos circulares que sejam o oposto do movimento do relógio. Para as senhoras: não bater natas em chantillyquando estão menstruadas. Não ver filmes de terror. Não jogar na lotaria em dia que faça coincidir a sexta-feira com o décimo-terceiro dia do mês (não vá a fortuna ser a aliteração do azar – como quem diz: se não fosse pela inesperada abastança, não seria dado a apreciar certo cometimento que acabará por inaugurar a desdita). Não tresler o ocaso nem fingir a maresia. Respeitar escrupulosamente a cartilha dos rituais. Ou então, o simples desprendimento destes atavismos, de todas estas algemas, autoinfligidos elementos que cerceiam a autonomia, e deixar o corpo e o pensamento vogarem livremente por onde lhes apetecer. Sem medo de nenhum medo. 

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