29.3.19

Rio cheio (short stories #105)


Mogwai, “Kin”, in https://www.youtube.com/watch?v=5kjXz-vYa40
          Não procuro o leito do rio: ele segue caudaloso depois das chuvas inesperadas, que as chuvas no fim da primavera são sempre inesperadas. Está medonho, o rio. E, ao mesmo tempo, admirável. Uma força da natureza, para usar um lugar-comum. As águas apressadas cavalgam em si mesmas, tropeçam, enovelam-se em remoinhos sucessivos. Nem imagino a convulsão interior que atesta a fúria do rio. Nos preparos indomáveis, o rio mete respeito. Que ninguém ouse lançar-se às águas, que seria devorado, estilhaçado contra as rochas submersas. O leve rumorejo foi substituído por um tonitruante grito que atravessa o desfiladeiro em que o rio se contém. O eco reverbera os fantasmas que parecem esvoaçar na penumbra deixada pela convulsão das águas. Dir-se-ia que se avistam esses vultos, desenhados nos interstícios da cortina de espuma salivada quando o rio esbarra num desnível ou embate fragorosamente numa cadeia de rochas. Ah, se ao menos fosse possível filmar abaixo da superfície das águas, para saber das convulsões interiores que desassossegam o rio. Desestimo a possibilidade: as águas correm turvas, lamacentas, trazem consigo vestígios de arbustos e árvores arrancados pelo rio cheio. E que interessa saber das convulsões interiores do rio, tê-las como esboço nítido? Os mirones não se contentam com a espuma à superfície das coisas; são ousados, querem saber das coisas no avesso que está contido na parte oculta. Talvez não sejam apenas mirones. O seu interesse – digamos – científico sobrepõe-se à aparência de serem mirones. Podiam (quem sabe?) cadastrar os metros cúbicos debitados pelo rio cheio, fazer uma cartografia do caudal do rio, comparar as fotografias do rio quando segue manso e do rio agora indomável. Para aprenderem com os humores do rio. Para terem seu próprio tirocínio quando o desassossego tomar conta deles e os dias forem iracundos e a serenidade em fratura exposta, sem saberem do paradeiro da lucidez, a vista embaciada por tantos sedimentos untuosos que se soerguem ao acaso. Saberiam, se descessem o curso do rio, que ele tem foz. Desagua num rio de grandeza maior, ou até no mar (se for rio de grandeza maior). E que no estuário derradeiro o rio aplaca a sua fúria, até ela se dissolver no caudal maior que o recebe. 

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