29.8.19

A pertença não é a aritmética da identidade (short stories #152)


Os Golpes (com Rui Pregal da Cunha), “Vá Lá Senhora”, in https://www.youtube.com/watch?v=8BrTp2ZpMMI
          Num daqueles momentos emblemáticos de férias, animação noturna em modo karaoke. Os bravos que mostram as suas (quase sempre) ineptas vozes são uma amostra da constelação de nacionalidades que descansam no hotel. Dois lusitanos empunham o microfone e esgalham uma música também ela tipicamente lusitana. Inebriados com o desempenho, um deles termina em viva voz com um sentido apelo à pertença: “boa noite, Portugal!”, seguindo-se uma exclamação sintomática (do estado de excitação e de uma certa portugalidade sobretudo intramuros): “carago!” Alguns patrícios presentes no evento soltaram sonoro aplauso, não sendo indiferentes à convocatória. Contrariando a maré dominante, fiquei indiferente. Não é o género de convocatória que desate a minha comoção. Não percebo a ostentação da nacionalidade quando se está no estrangeiro. É corrente entre muitos concidadãos quando estão no estrangeiro, sentindo uma necessidade irrefreável de mostrarem “o que são” (por referência à nacionalidade que trazem a tiracolo). No dia seguinte, esquadrinhei meticulosamente as varandas e janelas dos quartos do hotel, não fosse estar a bandeira lusitana hasteada num deles (ou em mais). Não era o caso. Talvez por não ser ano das estultas competições desportivas que põem os países uns “contra” os outros. Não deixei de pensar naquele ingénuo apelo pátrio. Parece que sentem uma súbita falta do ar pátrio quando pisam solo estrangeiro. Paradoxalmente, serão, muitos destes personagens, os primeiros a abjurar os seus concidadãos quando estão em casa. O que se devia cuidar é do conceito aplicável quando nos vemos como indivíduos inseridos numa comunidade política. As vistas curtas destes personagens grotescamente nacionalistas impedem que vejam para além da comunidade política mais óbvia (a nação), ignorando outras que se situam num plano inferior ou superior – e ignorando que, acima de tudo, somos todos feitos de ossos, carne e sangue. São os que respondem: “sou de Portugal”, quando seria mais sensato responderem “venho de Portugal”. Faria toda a diferença entre o pertença e identidade. E evitaria momentos embaraçosos de que nem se dão conta.

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