6.8.19

O Mercedes marxista (short stories #135)


Idles, “Mercedes Marxist”, in https://www.youtube.com/watch?v=2W6zK9givao
          A desgraça abatera-se sobre a impecável silhueta do marxista de velha linhagem. O opróbrio não vinha dos detratores, que com esses o marxista podia bem. Os críticos incomodavam-se quando o marxista de velha cepa protestava contra as obscenidades do capitalismo (o lucro como valor, a ganância, o individualismo que era apenas um eufemismo para egoísmo). O marxista tinha caído em desgraça junto dos seus apaniguados, e isso apoquentava-o. Agora já não tinha seguidores – e estes, perplexos com a perda de referências, estavam amadores no combate ao ignominioso capitalismo (e seus intérpretes). O marxista remetera-se ao exílio da casa. Há dias que não saía. Não queria ser confrontado com a vergonha. Não tinha medo de ser interrogado pelos detratores: esses eram o menor dos seus males, críticas vindas deles eram um bálsamo. O que não queria era o ultraje daqueles que outrora foram seus seguidores. Chamar-lhe-iam traidor. Acusá-lo-iam de ser um apóstata por ter sucumbido aos prazeres materiais que sempre combatera. Descobriu-se que o marxista se passeava num Mercedes, às escondidas, durante a madrugada. Visivelmente inebriado pelo que parecia ser o culto de conduzir um automóvel que era o epítome do consumismo que ele renegara durante toda a sua vida. O Mercedes custara sessenta e oito mil, trezentos e vinte e dois euros, devido aos extras de luxo que foram encomendados. Ao início, os prosélitos, ainda incrédulos, sugeriram a hipótese de ser um sósia do marxista. Afastada a hipótese – era mesmo o marxista que passeava o deleite no Mercedes – ainda se pensou que seria um automóvel tomado de empréstimo (o que não aplacaria o desvio de comportamento). Confirmou-se que o marxista era o proprietário do Mercedes. Por aqueles dias de julgamentos sumários do velho marxista (a quantas penas de prisão perpétua teria sido condenado, se todos esses julgamentos fossem compulsados?), só recebeu solidariedade de um adversário político. Este insurgiu-se conta o levantamento irado das hostes e denunciou a purificação moral dos julgadores do marxista. Só nessa altura – quando o outrora adversário perguntou: “quem lança a primeira pedra sem medo de estilhaçar os seus telhados de vidro?” –, o marxista ganhou direito ao sossego, deixando de bater repetidamente a cabeça contra paredes e mesas e tudo o que fosse objeto contundente.

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