27.1.20

As árvores não estão sozinhas


Pedro Mafama, “Lacrau”, in https://www.youtube.com/watch?v=VYuoLqBdlRQ
O que diriam as sereias ao chegarem às árvores no planalto? 
Por verem que elas não estão sozinhas, desviariam o olhar para as imediações. Teriam de perceber a lógica dos despenhadeiros que separam o planalto da planície. Teriam de auscultar o rumorejo dos ribeiros que descem das montanhas sobranceiras. Teriam de sentir com as mãos a porosidade das rochas que são a cama do terreno. Seriam convidadas a depreciar as árvores, porque o que primeiro viram (as árvores) estava acompanhado por outros elementos. 
As sereias seriam vítimas de um equívoco próprio. A primeira impressão do olhar depressa se perderia nas redondezas. Os restantes pormenores que compunham a paisagem. Talvez inebriadas pela originalidade do ecossistema (as sereias nunca tinham saído do mar), queriam tudo olhar, tudo apreciar. Sabiam que lhes estava reservado um tempo limitado fora do seu ecossistema. E ninguém as avisou que as árvores, as poucas árvores que resistiam aos maus elementos que dominavam o planalto, eram os atores principais. Mas elas entenderiam que essa fora a insinuação. 
Subia à boca de cena outra hipótese: as sereias estão habituadas a serem tratadas como uma fraude. Não constam do rol de vulgaridades e depressa se constata que não são dadas aos lugares-comuns. Apesar de as árvores serem centrípetas, e de a elas estar reservado um papel heurístico no planalto (os biólogos explicariam melhor: o efeito regenerador das árvores, como elas são o ponto de Arquimedes daquele lugar), as sereias aproveitariam a ocasião para escaparem à banalidade. Diriam: “sim, as árvores são centrípetas, mas elas não estão sozinhas.” Ato contínuo, passariam em revista a demais linhagem do planalto. Em sua prodigiosa memória, as sereias reproduziriam fielmente o desenho da paisagem, descendo aos pormenores que a enriquecem. Esquecer-se-iam do punhado de árvores centrípetas. De propósito. Seria a marca de insubmissão das sereias, já que suportam o ultraje de serem uma farsa.
As árvores não estão sozinhas. E quem disse que esse era o caso? Terá chegado aos ouvidos das sereias. Esse foi o pressuposto com que partiram quando viajaram até ao planalto. Alguém as terá educado para darem atenção às árvores formosas que dominavam o planalto. As sereias, habituadas a serem clandestinamente insubordinadas, saberiam ver que as árvores não estavam sozinhas. E esse seria o mote para inventariarem a demais paisagem. Esquecendo-se das árvores. E dando razão a quem houvera sussurrado que as árvores não estão sozinhas.
Mas isto seria se as sereias tivessem autorização para saírem da prisão a que estão confinadas.

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