10.1.20

Capítulo sete


Grace Jones, “La Vie em Rose”, in https://www.youtube.com/watch?v=q1IYUvrn8gk
As palavras de todos os dias. Extinguem-se? Banalizam-se? Não. São as palavras de todos os dias que emprestam sentido aos dias todos. As palavras de todos os dias não recusam as palavras singulares, as que são resgatadas a um lugar escondido do vocabulário e embelezam um instante, uma frase, um sentido que está a precisar de sentido através das palavras a que vem jungido. Ou os afeiam, porque a peregrinação da alma assim o exige.
A “vida a cor-de-rosa” – exulta-se. E porquê a cor-de-rosa? Há quem renegue o cor-de-rosa. Os boçais marialvas que o decretam inaplicável a homens que honrem o seu gabarito (que, recorde-se, é a linhagem boçal e marialva, logo, não recomendável). Outras pessoas indispõem-se com o cor-de-rosa por razões diversas que mereceriam indagação noutra sede. Dizem, os outros que não têm apneia com a cor, que uma vida a cor-de-rosa é isenta de angústia, não sobressaltada por fantasmas que precisam de exorcismo. A vida a cor-de-rosa é uma composição de palavras que interioriza as palavras de todos os dias, um sentido comum com um significado reconhecido pela maioria. E como será uma vida a cor-de-rosa para os boçais marialvas e para as pessoas que, por uma qualquer razão, repudiam o cor-de-rosa?
As palavras comuns ditam um sentido que se irradia, tornando-se convencional. Mas o que dirão as pessoas que, por exemplo, têm no preto a sua cor preferida? Podem adulterar a expressão vulgarizada, de si dizendo (se estiverem satisfeitos com a vida que levam) que estão enamorados com a vida a preto. A “vida a preto”: não soa bem? Aos costumes, não. Se alguém se confessar num périplo com a vida a preto, a expressão de comiseração não demora. A maioria considera que a vida a preto é sinónimo de luto, ou de constante inquietação por causas exteriores ao domínio da vontade.
As palavras de todos os dias são palavras de todos os dias para quem assim as reconhece. Não constituem uma medida absoluta. Não devem obrigar quem nelas não se revê a usar uma legenda de cada vez que afirma a sua pessoal e adulterada versão da expressão, corrompendo o sentido das palavras de todos os dias. Não há palavras de todos os dias. Apenas palavras, com o desenho que lhes é emprestado pelas diferenças entre as pessoas, pelos diferentes estados de espírito, pelas diferentes preferências, pelos diferentes matizes como a mesma palavra pode ser decifrada. 
Há palavras e hermenêutica, uma empreitada muito desvalorizada nos tempos atuais.

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