30.1.20

Centeno, o herói errado


Depeche Mode, “Heroes”, in https://www.youtube.com/watch?v=q6yzrZfgQvI
Mário Centeno anunciou que a diminuição das taxas de juro da dívida pública deve-se à credibilidade da política orçamental do governo de que é ministro das finanças. Centeno desvalorizou o papel do Banco Central Europeu (BCE), quando esta instituição passou a comprar dívida pública no mercado secundário. Ao mesmo tempo, o político Centeno desvalorizou toda uma literatura que identifica aquele contributo do BCE para a superação da crise da zona euro e para o alívio do ónus que pesava sobre a dívida pública de Portugal (e de outros países). Centeno, o político, desmentiu a comunidade científica que integrava até ter sido nomeado para o governo liderado por António Costa. 
Este seria (ou será...) mais um episódio acantonado numa nota de rodapé, perdendo-se na espuma dos dias. Mais um episódio da repetida desinformação sobre assuntos europeus devida a atores políticos, por ato intencional ou por ignorância. Como acontece frequentemente no rescaldo destes episódios, eles nem são atestados pelos cidadãos que não devem abdicar do escrutínio exigível em democracias modernas e ativas. Normalmente, quando toca a assuntos europeus, os atores políticos proferem as declarações que lhes apetece, sabendo que não são contraditados pela comunicação social e raras vezes o são pelos adversários políticos. E, contudo, destes episódios de desinformação resultam distorções que não podem passar em branco. Eles transportam ao cidadão uma perceção errada sobre a UE. Fruto deste viés, os cidadãos acabam a premiar quem não merece o aplauso, o que pode adulterar a sua decisão no momento do voto. 
Voltando ao assunto deste artigo de opinião, Centeno negou o que é reconhecido pela comunidade científica. Existem provas sólidas de que a intervenção do BCE favoreceu a inversão de tendência da remuneração da dívida pública. O simples anúncio da intenção de comprar dívida pública (pelo então governador do BCE, Mario Draghi, num discurso em Londres, em julho de 2012) bastou para que as taxas de juro da dívida começassem imediatamente a descer. O programa de compra de ativos da dívida soberana consolidou a tendência. O cenário tornou-se favorável para a gestão da dívida pública, sendo-o ainda mais para os países sobreendividados, como é o caso de Portugal. Pagar juros mais baixos pela dívida emitida é um bálsamo, pois o encargo dos juros decresce, tendo repercussões positivas no alívio do défice orçamental (naquela fração do défice que resulta do pagamento de juros).
Quando Centeno tomou posse, só era conhecido no meio académico. O ministro das finanças terá feito um excelente tirocínio político durante o mandato do anterior governo. Ao puxar pelos galões da reputação da política orçamental, Centeno apresentou-se a exame entre a casta dos políticos, talvez inebriado com a analogia com uma famosa personagem do futebol. Lamentavelmente, para o rigor da informação e para o conhecimento dos cidadãos, Centeno convocou um estatuto de herói que não lhe pertence. Os cidadãos merecem sabê-lo. Sim, é ao BCE que se deve a recuperação da credibilidade da política orçamental portuguesa.

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