15.1.20

Fábrica (short stories #192)


Ryuichi Sakamoto, “The Sheltering Sky”, in https://www.youtube.com/watch?v=xLRpPISVgoA
          Desce a cortina sobre a noite. Neste soar noturno, pressinto a lava que se insurge contra a letargia. Pressinto um ofegar próximo, a respiração por que me guio. Este prístino lugar não obedece a regras, só às não regras de que somos tutores. Enfeita-se o horizonte com os dedos que escrevem nomes, os nomes de que somos feitos. No parapeito da memória, interrogamos o porvir. Interrogamos as próprias interrogações que não deixam de ser palco suserano, o lugar da redenção, se houver proveito na redenção. Tudo é artesanal. Tudo é fabricado com as nossas mãos, como se elas fossem as suas próprias pétalas e de um poço de água pálida se erguessem as falas precisas, decantadas pelas pétalas. Às vezes, a noite emudece. Emudece e nós falamos por ela. Nós e o murmúrio do mar, que espreita no véu da tempestade que compõe uma estrofe do inverno. Somos a fábrica de onde sai a matéria-prima de que somos feitos. Circulando no ermo lugar que resgatamos às juras, sem descuidar o amplexo em que caem os corpos à espera de ficarem trespassados pela estuação da carne. Não apetece dar corda ao relógio. Não apetece que o vento deixe de ciciar na sua iracunda proclamação. A lareira crepita com a exultação do sangue que se torna cálice em ebulição. Sabemos o que fazer desta combustão. Emprestamos as achas abraseadas à pele acometida pelo frio. Não é que precisássemos. A chama farta que de nós emana seria suficiente para aquecer o casario todo em volta. Talvez, sem exagerar, uma metrópole inteira. Sabemos que somos a fábrica dos sentidos colhidos no ponto mais alto do miradouro, onde só os mais audazes conseguem chegar. Seríamos, se estivéssemos nos Andes, andinistas diligentes contra a moldura baça dos decadentes. Agarramos o vento antes que ele fuja. Antes que abençoe outras latitudes. E tomamos em nós a linhagem sublime das paisagens bucólicas, sem olhar para trás, sem esperar pelo que se antecipa à nossa frente. Porque os olhos mergulham na imensidão dos olhos outros, e saciam-se.

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