2.1.20

A segunda maré (short stories #189)


Zero 7, “Passing By”, in https://www.youtube.com/watch?v=3q_MAzkGXjU
          O que nos conta o marégrafo? A espuma das ondas aviva a cal que se sentou na praia. Diz-se: é de esperar que as grandes incumbências não fiquem para segundas núpcias. Ao encontro das promessas, um arco-íris inesperado tinge as gotas que sobram da maré que beija a areia. Foi a primeira maré. Aquela que cumpre as possibilidades, num sortido de juras com o selo do notário. Mas não é a primeira a maré que vem desmatar os medos. Não é esta a maré que inspira o olhar. E o que vê o olhar? Sobram sobre o pano gasto as cicatrizes que estão em cima da pele. São suas substitutas. Não cumprem a função das cicatrizes tatuadas na pele, mas servem de inscrição para memória futura. O mar vaza. Dá lugar aos preparativos para a maré consecutiva. Os artesãos pacientes revistam o areal molhado, encontram o que o mar despejou na areia depois da maré que nela se gastou. O mar deixa um recado: “não imaginam o que tenho para trazer nos despojos da maré.” Não interessa. Porque o lugar que ocupamos, depois da maré intemperada, é o planalto servido na segunda maré. Estamos preparados. Intuímos os usos da maré, porque já nos adestramos na maré anterior, a que ficou como o santuário inaugural do dicionário por que nos regemos. A segunda maré anuncia-se. O vento está a preceito, o perfeito habitáculo que deixa pressentir o planalto da maré. Damos voz ao marégrafo. A areia que fora cemitério da maré anterior começa a ficar submersa. A água coloniza pedaços cada vez maiores da areia, que deixa de estar à mostra. E bebemos a maresia a combinar com o lúpulo que é a fermentação que nos aponta um norte. Pela noite, quando a segunda maré deixar seu testemunho, seremos ainda maiores.

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