7.1.20

Incógnita


Portishead, “Machine Gun” (live on Later With Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=oCAIsPz8nWg
De rastos. Sentia-se de rastos. Ou os restos de si próprio. Advertiam os penhorados vultos em forma de capital que esse devia ser o seu estado, que a moralidade dominante ensina que a felicidade é uma extravagância pecaminosa, evitável.
Não estava convencido que pudesse ser convocado para o banco dos réus onde se joga a validade das abjurações. Procurou contornar as fronteiras da consciência. Não sabia localizá-las. A qualidade da retórica não assistia os argumentos. Não podia esperar contemplação na hora certa do julgamento esperado. É possível que os juízes subissem ao púlpito sem darem a conhecer os rostos. Seriam juízes incógnitos, para cercearem as moratórias dos réus. Juízes incógnitos, para um processo incógnito. Desconhecidas, as garantias.
Não se recordava de ter consultado a acusação. Sabia que era acusado, mas não o crime de que vinha acusado. Não podia prever o julgamento por omissão. Nem seriam precisos agentes de autoridade para coagir a presença no tribunal incógnito. Uma força inapelável cuidaria de o empurrar para o tribunal, mesmo contra a vontade. No dia e hora marcados, estaria no tribunal a aguardar o julgamento, sitiado por uma irremediável esquizofrenia: ao mesmo tempo que temia o pleito e não confiava na imparcialidade dos juízes, queria submeter-se ao julgamento. Intuía que era o único modo de arrumar com o processo, ciente (no que a memória permitia caucionar) que o perdão dependia da absolvição em juízo. 
Se a lucidez não estivesse embaciada, poderia ter interrogado se tinha acolhimento um salto metodológico: que notificação tem vencimento se os corredores interiores do pensamento não reconhecem a infração? De que absolvição se fala se não há permissão para o perdão, já que a transgressão não é reconhecida? 
A demanda não podia ficar sem resposta. Não sabia das cores que preenchiam a culpa sem rosto. Não sabia como tratar a incógnita que deixava a equação em suspenso. Se ao menos o arrependimento não adiasse o tempo, podia encontrar o dedo acusatório entre os despojos do venal labirinto deixados como ruínas da encruzilhada. 

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