20.1.20

O dedo mindinho de quem beberica um chá


Wilco, “Handshake Drug” (liva at Lollapalooza), in https://www.youtube.com/watch?v=c4Jvg58MnfM
A velhinha passeava pela rua que circundava a velha fábrica, arrastando o passo nos ossos condoídos. Balbuciava umas palavras ininteligíveis, como se fosse dona de um idioma que mais ninguém entendia. Trazia sempre ao pescoço uma medalha, como se em tempos tivesse sido agraciada nas olimpíadas – ou, eventualmente, porque a achou entre os despojos de alguém e aquela medalha era de fancaria. Mesmo quando chovia, a velhinha errava em círculos, como se contasse as voltas à volta da fábrica que era o epitome da decadência. O oleado encardido prevenia a gripe.
Antes de atravessar a rua – empreitada arriscada, pelo muito trânsito e porque os automóveis correm a grande velocidade – a velhinha parava em frente aos vestígios de um muro da fábrica. Ficava inerte, a cabeça na direção do chão, continuando a balbuciar uns termos estranhos, como se estivesse numa prece. No fim do ritual, erguia uma mão e assentava-a na parede que em tempos amurou a fábrica. Arrumava as luvas que deixavam os dedos à mostra, tirava o gorro e as mãos fartas massajavam os cabelos todavia bem tratados. 
Um dia – era um dos primeiros dias soalheiros da primavera – a velhinha mudou o ritual. Depois do que parecia a prece em frente dos vestígios do muro da fábrica, tirou uns pertences da sacola que traz sempre a tiracolo. Sentou-se entre as ruínas da fábrica e começou a preparar um chá. A água da termos ainda estava quente, libertando um vapor abundante mal foi destapada. Terminada a feitura do chá, beijou a medalha possivelmente olímpica (ou não), ergueu uma mão na direção da parede onde parecia repetir o rito da oração e levou a chávena à boca, com cuidado porque o chá ainda fervia. E todos os que passavam pelo local puderam testemunhar o dedo mindinho destacado dos demais dedos enquanto a velhinha bebericava o chá de tília acompanhado por umas bolachas que cozinhara com as sobras da cozinha improvisada. Ou não: naquele lugar, as pessoas que passam vão apressadas, aproveitam a ingreme descida para deitarem velocidade nos automóveis. Não têm tempo para ver a paisagem que, em abono da verdade, é um amontoado de feiura.
No dia seguinte, a velhinha não fez a habitual vistoria à fábrica decadente. Ninguém notou a sua falta. A não ser a chávena de chá que ficou esquecida nas ruínas da fábrica, à espera de se tornar, ela também, parte das ruínas. À espera dos quatro dedos seguros da velhinha.

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