Dead Combo, Márcia e Camané, “Desumanização”, in https://www.youtube.com/watch?v=MxrGHi92Ro4
Jogava com as janelas como dantes jogava com o pião, quando era menino. Fugia das sombras como fugia das luzes. Fugia dos juízes. Não queria saber dos demónios vastos escondidos na planície. Desconfiava que os ventos de sul arrebatassem os medos que supunha castrados. Dizia:
- Não me lembro dos rostos. Não me lembro dos odores. Não sei dos nomes. Dos nomes. Da lava escura que se deitou na paisagem, depois da erupção. Tomo-me pelo vulcão, a soberba dos indecisos, e sei-me irredentista de mim mesmo. Não sei o que fazer.
Tomava de assalto as janelas em seu avesso. As minhas e as dos outros. Não queria saber das vidas. Temia por elas e a minha já era matéria de sobra. Por isso, cuidava do avesso das janelas. Uma tábua órfã arrancada ao mear da maré escondida. Ao longe, parecia ver um jardim. Mas o jardim estava embaciado, a neve corrida pelo vento assentava como uma delicodoce névoa que distorcia a silhueta dos lugares. Não me sentia vindicado. “Os lugares são sempre estranhos quando não os sentimos nossos”, lera algures. A imperturbável face emprestava rigor ao frio. Mas afinal não era neve. Era só um quadro disforme cavalgando o sopé do bosque, confundindo-se com a paisagem. Disse:
- Só as coisas maravilhosas merecem o crédito das pessoas. E, mesmo assim, elas são trespassadas por angústias que açambarcam as almas. Das almas desmaiadas por serem tutoras de tanta indulgência. As almas que se entregam na armadilha das angústias, sem saberem que, uma vez a elas penhoradas, só com um temperamento metódico a elas escapam. Devia-se aprender com os abismos escondidos e sagrar as coisas que aformoseiam as vidas.
As esquinas eram os gastos cais de que todos fugiam. Havia medo a abrasear o céu da boca, como se de uma sede infalível fôssemos meãos. No ocaso antecipavam-se as estrelas furtivas entre as nuvens timoratas. As lembranças rumorejavam um verbo ininteligível. Esperava pelos parágrafos como quem espera num apeadeiro, sem saber que o comboio passa na linha oposta. Não queria saber dos nomes, não recordava os rostos nem com as mais poderosas mnemónicas. Se ao menos a noite não fosse um labirinto; se ao menos os menos de tudo se somassem para estonar as velas sem assombro, na soma maior de todas, diria sem escrúpulo:
- Ah, venham ao meu regaço os ventos sem bússola, os capatazes dos mares, os poetas militantes, as avós sem tantos braços para o colo dos netos, um segredo sussurrado ao ouvido com a pele trémula de seguida, as planícies mesmo sendo todas iguais, os mapas numa página em branco, as nascentes de onde bolça o primeiro esgar dos ribeiros, e toda a opulência do tempo creditado. Como se de um amanhã não houvesse notícia. Como se à morte fossem devolvidas as vidas em sua perene coexistência.
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