22.1.20

Mercurocromo (short stories #193)


Evols, “Kindness and Talk”, in https://www.youtube.com/watch?v=r3C6mzS9jxQ
          Não sejas mendaz no esconderijo onde ocultas as cicatrizes. Onde agora estão as cicatrizes, outrora houve ferimentos. Carne aberta, sangue escorrendo pelo corpo abaixo. Uma angústia tremenda. Uma dor compungida. Disseste que passaste mercurocromo e tudo sarou. Tudo se sanou. Podia acreditar. Talvez queiras que eu acredite. Podia fazer esse favor. Ou não. Não julgues que estou preso a um justicialismo e que em teu nome procure a justiça devida. Tu sabes que o mercurocromo não é reparador. As cicatrizes ficam no mesmo lugar. Ficam, como mnemónica das feridas a que deram lugar. Dizes: a memória compõe-se, temos de ser os lídimos arquitetos da nossa memória. Desconfio que é linguagem cifrada para não te importunar. Mas não consigo. As tuas cicatrizes doem-me mais do que a ti. A dor é uma circunstância relativa. Pode ser que me sobressalte a patranha em forma de gente e como todos os fingimentos são um ardil por dentro de si mesmos, numa beligerante contrafação dos sentimentos em que, a páginas tantas, já ninguém sabe o que é o fingimento – já ninguém sabe nada. Nada disso deve interessar se pedes para não avivar as cicatrizes com a cal das lembranças. As cicatrizes são um abrigo que separam a carne da dor. Entendo que não devo avançar na hermenêutica dos acontecimentos, nas possibilidades que se jogam no tabuleiro onde tudo se desarticula. Estás coberta de razão: atira-se mercurocromo para cima das feridas e fica-se à espera que elas encerrem, que formalizem as suas próprias cicatrizes. E depois, olha-se para as cicatrizes e a memória adulterada não consegue saber por que estão naqueles lugares da cartografia do corpo. À espera – quem sabe? – de novas balas assestadas na direção do corpo, para mais cicatrizes serem levantadas no embaciar do sofrimento que houve um dia. “E assim sucessivamente.” Até que as cicatrizes que levaram mercurocromo sejam a metáfora de um corpo defenestrado de que a memória não tem lembrança.

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